Sou natural de São Paulo e cresci em uma família de migrantes do interior do estado que se instalaram na extrema periferia da capital e, aos poucos, foram se estabilizando com muito trabalho.
Tínhamos uma grande família, pois muitos de nossos tios também vieram se estabelecer ali. Minha casa era composta por meu pai, minha mãe, meu irmão mais velho e eu. Enquanto o mais novo da casa, muito se esperava de mim, pois meus primos mais velhos e meu irmão já tinham conquistado feitos que nenhuma outra geração da família tinha atingido até aquele momento. Então lá fui eu: empenhado, decidido, com firme vontade de honrar esta expectativa. Mas era preciso dar nomes aos sonhos e concretizar alguns projetos de base. Assim começa minha vocação…
Ainda sem saber qual carreira que queria seguir, eu passei em um cursinho pré-vestibular de uma importante faculdade de Medicina da cidade. E como eu já tinha inclinação para esta área, foi inevitável o encanto por este universo clínico. Eu sabia que eu tinha um grande desafio na minha frente, mas eu estava determinado. A rotina dos estudos não me incomodava, pois tinha o privilégio de estudar dia e noite naquele período. Passava horas na faculdade antes de assistir às aulas a noite. Entretanto, algo começou a me soar mal naquela sala de aula: era uma antiga sala de anatomia e os bancos eram dispostos em forma de anfiteatro, inclinados e convergiam a um ponto central. Eu me sentava na última fileira. À minha frente era um mar de nucas sem rostos, mais conhecidos naquela época por concorrentes. Ao longo do ano a sala esvaziava. Até que então, antes das férias de julho, um professor resolveu não dar aula, mas uma palestra sobre a vida dele. Resumindo: ele entrou para a medicina para salvar vidas e terminava a faculdade consertando pernas. A vocação dele perdeu o sentido em algum lugar. E ele foi enfático: “se querem seguir a medicina, avaliem as suas motivações. Vocês lidarão com vidas.”. Aquilo para mim foi um choque. Pela primeira vez eu estava sentado na fileira da frente e não via mais um mar de nucas, mas vi pude ver naquele dia um rosto na minha frente: pela primeira vez eu vi a alma de alguém de perto.
Comecei a me questionar, então, o que eu queria para a minha vida, se os sonhos que eu sonhava de fato eram meus. Se meu empenho era para a minha realização pessoal ou se eu só queria provar para alguém meu valor. Aquilo me levou para uma crise tão profunda que me atormentou por meses e era só o começo. Passei a colocar toda a minha vida numa balança e notei que, dentre todas as coisas que eu fazia, existia uma escala de valores sobre aquilo em que eu mais me realizava. Apesar de gostar de estudar, minha paixão era a igreja, as pessoas que eu encontrava por lá, os grupos dos quais eu pertencia, o teatro, as amizades preciosas que ali encontrei, as nossas ações pelas famílias. De alguma forma eu intuía que isto era semente de algo maior dentro de mim.
Mas a vida continuava, o ano findava e o vestibular se aproximava. Esforcei-me, me empenhei e passei na primeira fase. Tudo bem, faltava tão pouco. Veio a segunda fase. Aquela crise não passou. E então joguei tudo para o alto, fiz a minha “volta de espoleto”. Decidi não saber se passei ou não. Eu queria era descobrir meu caminho, minha felicidade dependia disso. Decidi fazer um discernimento apurado primeiro e, devido às coisas que avaliei em mim, meu primeiro julgamento foi: “eu quero ser padre”. Encontrei conforto em algumas pessoas que me apoiaram, fui chamado de louco (e não foi pouco) e isso ainda era só o começo. Comecei a trabalhar para não pesar para minha família e fiz o meu caminho. Mas outra crise veio. E agora? Pra onde eu vou?
Então fui até a minha diocese, esperançoso de que lá estava o que Deus queria de mim. Decepção. Não me sentia bem naquele lugar, ainda faltava alguma coisa que eu não sabia o que era. E não dar nome àquilo que lhe falta é algo dolorido. Mas continuei frequentando aqueles encontros, mesmo na dúvida e na incerteza.
Em um dos trabalhos da minha paróquia, precisei ir ao centro da cidade para comprar alguns materiais de ornamento. Eu estava com um amigo meu e resolvemos parar numa Igreja para confissão. Foi ali que Deus começou a me indicar o caminho. A igreja era o Santuário São Francisco. Nós entramos na igreja e quando chegou a minha vez de ir ao confessionário me deparei com uma figura que eu nunca tinha visto antes: um frade. Seu jeito risonho, seu hábito impecável, seu olhar alegre, me acolheram dentro daquela sala e, tal como aquele rosto da sala de aula, eu via novamente um rosto, mas desta vez era um rosto transfigurado.
Eu nunca me senti tão filho de Deus dentro de um lugar onde antes eu me sentia um pecador. Encontrei alguém em quem me espelhar, pois eu saí rindo do confessionário. Mas desatento que sou, acho que estava anestesiado demais com aquela experiência, que nem cheguei a falar sobre vocação com ele. Mas aquela alegria tão era diferente.
Passados alguns dias, minha afilhada precisou de companhia para uma consulta médica e eu fui acompanha-la. Qual não foi minha surpresa ao ver que o ponto final do ônibus que tomamos para retornar era justamente na frente daquele convento. De imediato convidei-a para conhecer o convento, na intenção de encontrar aquela figura novamente. Mas encontrei outro frade, também muito cordial, que me apresentou o meu animador vocacional. Pena que eu tinha chegado tarde, o encontro vocacional tinha acontecido no dia anterior. Tudo bem, mês seguinte também teve e pude ir. Já estávamos em setembro.
Quando cheguei, fui muito bem acolhido. Participamos da missa seguida de uma reunião na qual conversamos muito sobre São Francisco, a quem eu já amava de coração. Entretanto, até ali era só mais um encontro vocacional. Quando faltavam trinta minutos para o almoço, nós vocacionados fomos à sala de convívio, ali foi onde tive certeza do meu chamado. Ver toda a fraternidade reunida, todos dialogando entre si, o mais velho e o mais novo estavam juntos conversando sem distinção; o irmão leigo e o irmão sacerdote; o guardião da casa era um entre eles. Aquilo foi decisivo, encontrei na fraternidade o que me faltava e pude proferir: “É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que desejo fazer de todo coração”.
Mas só faltava um encontro vocacional e em seguida já era a chamada para ingressar no seminário, eu já tinha me convencido que precisaria fazer mais um ano de acompanhamento. Mas longe de desanimar, nunca tinha estado tão feliz em toda a vida. Foi então que tudo o que houvesse sobre São Francisco eu estava lá: Transitus, Trezena, dia de São Francisco, ordenação dos frades, dia de Frei Galvão. Eu estava em tudo e participava com muita alegria.
Até que um dia meu animador vocacional me chamou para conversar, logo pensei: “aprontei alguma coisa que ele não gostou”. Mas estava lá, com a cara e a coragem esperando uma bronca, quando ele me disse: “Vitor, você se assemelha aos trabalhadores da vinha que chegaram por último e receberam o mesmo salário dos demais. Você quer ingressar no seminário ano que vem?”. Eu não sabia se ria ou chorava.
Hoje eu sei que aquela determinação originária de querer encontrar meu caminho ainda permanece, não mais para descobri-lo, mas para nele perseverar e crescer até o fim. Sei que essa caminhada só se findará no fim da minha vida. Mas o que é o fim pra quem já descobriu o céu? Só me resta ser fiel e rezar para que Jesus conclua a obra que ele mesmo começou em mim. E afirmo: Não tenha medo de se lançar no caminho de Deus! Deixem que te chamem de louco, pois um louco Francisco de Assis assim também fez e mudou o mundo, e minha vida também.
Paz e Bem
Vitor Amâncio, OFM