Em Fraternidade apresenta: “Um preto no altar”, novo livro de Frei Alvaci

Lançado no final do ano passado, o livro “Um preto no altar: resistência e protagonismo em um território de disputas”, do franciscano Frei Alvaci Mendes da Luz, resgata a história da Irmandade de São Benedito que esteve à frente dos cuidados da igreja franciscana do Largo São Francisco, centro de São Paulo (SP), por mais de oitenta anos. 

É o primeiro livro do frade que nasceu de seus estudos acadêmicos no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP). Dentre as inúmeras descobertas, Frei Alvaci explica que um dos episódios mais importantes deste grupo instalado no Largo de São Francisco foi quando no final do século XIX eles conseguiram colocar no altar-mor, no ponto mais alto, ou seja, no nicho central, a imagem do seu patrono São Benedito, substituindo a imagem de São Francisco que lá estivera por muitos anos. “O episódio foi tão relevante e envolto em contextos sociais tão importantes que foi utilizado como argumento, anos depois, para a expulsão daquele grupo negro da Igreja do Convento de São Francisco”, disse.

“Descobrimos assim que o território foi por muito tempo espaço de manutenção dos costumes, devoções e memórias negras na capital paulista”, revelou.

Acompanhe a entrevista completa, concedida a Frei Augusto Luiz Gabriel.

Conexão Fraterna: Frei Alvaci, como nasceu a ideia do livro “Um preto no altar: resistência e protagonismo em um território de disputas”?

Frei Alvaci: A ideia de pesquisar mais e intensificar os estudos sobre a presença franciscana em São Paulo, e de modo particular no Convento de São Francisco do centro da capital, nasceu justamente no período em que eu morava naquele convento. Durante as visitas de turistas e grupos interessados no assunto surgia geralmente a dúvida sobre o período em que a Igreja e o Convento franciscano do centro ficaram sem a presença dos frades, ou seja, de 1828 até 1910. 

Por quem ele foi administrado? Quem cuidava da igreja? Com qual propósito? Destas perguntas nasceu a intenção de estudos mais aprofundados que foram apresentados ao Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP). O projeto foi aprovado sob a orientação do prof. Dr. Alberto Schneider e realizado ao longo de dois anos. 

Foram nas fontes históricas dos arquivos franciscanos e da Arquidiocese de São Paulo que descobrimos que foi um grupo de católicos negros, escravizados ou ex-escravizados em sua maioria, chamado de Irmandade de São Benedito, que esteve à frente dos cuidados da igreja franciscana por mais de oitenta anos. Descobrimos assim que o território do Largo São Francisco foi por muito tempo espaço de manutenção dos costumes, devoções e memórias negras na capital paulista. 

As pesquisas finais geraram uma dissertação de mestrado apresentada ao Programa, defendida e depositada na PUC/SP e por fim a publicação em formato de livro também aprovado e impresso pela editora Vozes de Petrópolis. 

Imagem: Jornal “O São Paulo”, 2022.

Conexão Fraterna: Por que este título? É seu primeiro livro?

Frei Alvaci: A ideia do título nasceu depois da defesa da dissertação. Naquela ocasião o trabalho final tinha por título “Os negros de São Benedito na igreja do Convento de São Francisco”. Uma das professoras da banca avaliadora, Dra. Antônia Aparecida Quintão, me alertou para o fato de que os pretos das irmandades católicas, que são os grupos estudados e apresentados no livro, não utilizavam para se autodenominarem a palavra “negro”, mas sim o termo “preto”. Eles se intitulavam “os pretos de São Benedito” e não “os negros de São Benedito”. Do mesmo modo acontecia com as outras irmandades de pretos, como por exemplo as mais conhecidas delas: as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Aliás, o próprio santo que dava nome a irmandade estudada na dissertação, aquela que cuidava da Igreja franciscana de São Paulo no período pesquisado, era chamado de “o nosso preto” ou “o preto Benedito”, numa clara alusão a identificação racial dos africanos escravizados, ou negros nascidos no Brasil, com o santo siciliano padroeiro das comunidades negras.

Um dos episódios mais importantes deste grupo instalado no Largo de São Francisco foi quando no final do século XIX eles conseguiram colocar no altar-mor, no ponto mais alto, ou seja, no nicho central, a imagem do seu patrono São Benedito, substituindo a imagem de São Francisco que lá estivera por muitos anos. O episódio foi tão relevante e envolto em contextos sociais tão importantes que foi utilizado como argumento, anos depois, para a expulsão daquele grupo negro da Igreja do Convento de São Francisco. 

O título, portanto, faz alusão a este episódio em particular, respeitando os termos utilizados pelos membros das confrarias de pretos e ainda aludindo aos diversos altares para além daquele da igreja franciscana onde “um preto” ascendeu. O preto Benedito está nos altares das igrejas, mas está também nos altares pessoais (foto da capa), sobre as geladeiras das casas ou em pequenos oratórios. O preto siciliano que carrega na pele a cor da escravização de seres humanos, e que foi ele também escravizado, ascendeu a diversos altares mundo afora graças a força e ao protagonismo de homens e mulheres negras. 

E respondendo a segunda pergunta, sim, este é meu primeiro trabalho de pesquisa que se tornou livro.

Conexão Fraterna: Quais aprendizados e descobertas o sr. teve ao pesquisar e escrever este texto?

Frei Alvaci: Em primeiro lugar aprendi a perceber e respeitar as múltiplas faces que compõe o nosso país. Variadas cores, diversas culturas e diferentes povos formaram as características físicas, religiosas e culturais que temos hoje em nosso Brasil. Não dá mais para tentar esconder nas páginas oficiais da história os nomes, os rostos e as memórias de milhares de pessoas pretas, pardas e indígenas que compuseram o que hoje chamamos de nação. 

Dentre as múltiplas memórias, histórias e rastros, destaco a do povo preto, arrancado de suas terras, forçado a trabalhar e construir a riqueza de outros, e por séculos relegados à páginas secundárias de nossa história oficial. O livro “Um preto no altar” tenta ser um desses grãos de areia no processo de reconstrução destas histórias de protagonismo.  

O que mais me impressionou, sem sombra de dúvidas, foi o fato de como as comunidades negras no Brasil foram resistentes e persistentes nos seus objetivos, sonhos, religiões e ideais desde os primórdios, marcando assim com muita luta, sangue e suor o seu legado e deixando marcas inapagáveis impressas por toda parte, de Norte a Sul.

Meu respeito e reverência a estas memórias só aumentou ao pesquisar e redescobrir a história de resistência e protagonismo da irmandade de São Benedito do largo São Francisco. 

Frei Alvaci durante Celebração Eucarística na Igreja do Largo São Francisco. Imagem: Frei Augusto Luiz Gabriel, 2018.

Conexão Fraterna: Colocar um santo preto no lugar mais alto do altar principal de uma igreja particular, em fins do século XIX, não foi tarefa fácil para a Irmandade de São Benedito do Largo São Francisco. Como se deu este fato?

Frei Alvaci: Como já sinalizei, a Irmandade de São Benedito esteve por mais de oitenta anos na administração da igreja franciscana do Largo São Francisco. 

Com a saída dos frades da capital paulista, que se deu por diferentes motivos, mas de modo particular pela criação da primeira faculdade de Direito do Brasil instalada no Convento franciscano, os pretos Beneditos (assim eles ficaram conhecidos) viram a oportunidade de administrar o espaço. Mesmo não sendo repassado oficialmente a eles o cuidado da Igreja, embora eles se reunissem ali por há mais de um século, na prática foram eles os cuidadores daquele espaço de culto.

Durante décadas fizeram reformas, melhorias no templo, organizaram festas e procissões, enfim, foram os “senhores da Igreja” (como se dizia). Na década de 1880, período de forte crescimento dos movimentos abolicionistas no país, intensificados no Largo São Francisco pelo apoio da faculdade de Direito, os pretos de São Benedito cientes dos fatos e participantes também dos movimentos pró-libertação dos cativos, viram mais uma vez uma oportunidade: trocar as imagens dos santos. No contexto da década efervescente do abolicionismo, um santo branco (Francisco) foi substituído por um santo preto (Benedito) marcando definitivamente a presença daquela irmandade e daquela comunidade negra no espaço social e religioso do centro de São Paulo. 

No meu ponto de visto este foi um dos episódios político/simbólicos mais relevante para a Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos de São Paulo.

Conexão Fraterna: Deixe uma mensagem aos nossos internautas, em especial aos jovens!

Frei Alvaci: O que eu poderia dizer a vocês que chegaram até aqui ao final destes textos, destas perguntas? Em momentos tão conturbados como os atuais, muitas vezes alheios a realidade que nos cerca, aos eventos históricos e ao cuidado com o próximo, minha recomendação é aprofundarmo-nos sempre mais: ler, estudar, buscar a verdade que vai muito além das mentiras contadas e recontadas inúmeras vezes.

Recomendo um olhar mais atendo àqueles homens e mulheres relegados ao segundo plano em nossas perspectivas e projetos. Que possamos olhar o mundo com olhares mais sinceros e fraternos. Que o mundo enxergue em nós perspectivas de amor e solidariedade. E que, acima de tudo, a gente conheça bem a nossa história antes de qualquer prejulgamento, preconceito ou adesão a sistemas que excluem, exploram e matam.

Conhecer bem a nossa história não nos ajuda a prever o futuro, mas nos ajuda sem dúvida alguma a viver melhor o presente e não repetir os erros do passado. 

Imagem: Editora Vozes, 2022.

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