Para muitas pessoas a palavra crise tem um peso muito grande. Uma crise de ansiedade, uma crise num relacionamento, uma crise econômica. Isso são todos sintomas pelas quais nenhum ser humano quer passar. Mas o fato é que não há ser vivente que atravesse a jornada entre o pó da concepção e o pó do fim da existência terrena e não vivencie uma crise sequer. Crise de ciúme por um amigo ou companheiro, crise de identidade, crise de uma vida pacata demais, crise de uma vida agitada demais.
Então, ao invés de brigarmos com a crise, que tal percebermos ela como um sinal de que há algo precisando ser ajustado? Uma crise de ansiedade não surge do nada. Uma crise de consciência depois de um exame de sangue com resultados alterados não é motivo de desmotivar, mas ocasião de olhar para si mesmo e se perguntar: como estou cuidando de mim? Uma crise num relacionamento pode ser ocasião para que algumas verdades sejam ditas e depois o casal pode tomar um novo rumo. O fato é que depois de uma crise há dois caminhos: afundar-se no problema, na dor, ou então, fazer dela uma ocasião de mudança.
E o próprio termo crise é interessante. Na sua etimologia significa “purificação” assim como uma pedra preciosa é purificada. Ela passa do material bruto para ser considerada ainda mais valiosa. E assim é a crise, é a purificação do ser humano, a retirada da mesmice para um novo modo. Uma nova forma.
E é fato que a crise deixa marcas. Ás vezes, num relacionamento, a crise deixa a marca de uma discussão de voz alterada, de um desinteresse, de um “vou embora” dito que demora tempo para ser esquecido. Entretanto, depois dessa marca dolorosa, desse machucado, ou ele se torna uma ocasião para olhar a dor ou então de ruptura. Muitos casais, por exemplo, só amadurecem a relação e vivem um novo estágio depois de uma crise onde as coisas pareciam não ter mais sentido. Mas sempre se recordam daquela marca que ficou dolorosa por um tempo, mas que foi necessária para o amadurecimento.
Assim também pode acontecer com um exame alterado. A pessoa vive pensando nos outros, ou então imersa numa rotina desregrada e extenuante e um diagnóstico realista a coloca na condição de paciente. A crise, nesse momento, pode assumir a marca da dor até de uma cirurgia. Mas essa marca pode ser a demonstração de que é preciso um novo modo de ver a vida. Um exame alterado, um diagnóstico um pouco mais preocupante, uma cirurgia não são motivo de desespero mas marcas para olhar para si mesmo e perceber que é preciso purificar o cuidar de si.
Um crise econômica também deixa marcas dolorosas. Pobreza, fome, miséria… e ninguém quer passar por isso. Porém, pode ser ocasião de aprendizado onde o enriquecimento rápido talvez seja a antecipação de uma queda brusca. A crise econômica tem o poder de fazer fluir a criatividade. Uma empresa falida não significa que ela acabou. Ela faliu, mas pode renascer se souber se reinventar, ou então encerra o seu protagonismo para dar lugar a outra coisa. As empresas de máquina de escrever provavelmente viram o seu auge e o seu declínio ao darem lugar para a nova tecnologia que surgia. Muitos são os relatos de empresas que nas crises se reinventaram e se tornaram até mais fortes do que antes.
Já na crise de ansiedade a perspectiva pode ser também observada nessa direção. Há algo que precisa ser observado. Há uma realidade precisando ser curada. E talvez um momento de crise deixa a marca para a busca do cuidado com a saúde mental e integral. Muitas pessoas partilham: eu tive uma crise de ansiedade no meu trabalho e percebi que era hora de cuidar de mim.
Enfim, deveríamos nos reconciliar com a crise. É claro que viver ela é um tanto doloroso (seria masoquista desejar sofrer). Mas partirmos da certeza de que sua existência é inevitável na vida humana talvez nos ajude a observar ela como ocasião de crescimento, e embora a sua marca doa em nós e às vezes nos leve até essa ocasião difícil, ela pode ser ressignificada como sinal de que: “eu já passei por essa dor e agora a vejo como momento decisivo de crescimento pessoal”.
E hoje celebramos as Chagas de São Francisco. Francisco de Assis não recebeu as chagas num momento de euforia em sua vida. No ano anterior ele foi obrigado a escrever uma regra para os seus irmãos, pois já havia uma deturpação do carisma inicial. O texto que ele apresentou não foi bulado, isto é, aceito. Então precisou de uma nova edição. Ele também já sentia as dores das doenças da época em seu corpo e a fraqueza própria de quem já tinha desgastado todas as fibras que repousam sobre seus ossos. O seu olhar já era frágil e então necessitar de ajuda é algo que nenhum ser humano está tão pronto assim. Ser, de certo modo, independente, é algo extraordinário e quando isso começa a ser abalado, há uma grande mudança de mentalidade a ser feita.
Francisco vivia uma crise. E com certeza apresentava-a a Deus. Íntimo do Senhor, era constantemente visto em oração. Não como preceito, mas como grito de um homem na crise. Sua Ordem começava a tomar rumos diversos, o seu corpo já não era o mesmo. Era hora de olhar para si. Por isso uma marca lhe foi dada: os estigmas. Ter no próprio corpo as chagas de Cristo não foi algo indelével. Mas ao mesmo tempo, confirmava a sua caminhada até então e lhe demonstrava que a sua busca interior estava certa. Quando tudo parecia ruir fisicamente, o seu Espírito se encheu de novo ânimo ao ser atingido pelo Senhor.
A marca que a crise lhe deixou foi oportunidade para ser cuidado fisicamente pelos irmãos mais próximos. Ele aceitou um pouco mais os cuidados daqueles que o amavam. O seu corpo já precisava disso. Ele entendeu que a Ordem precisava caminhar com suas próprias pernas, pois ele sempre seria uma referência, mas se ela não amadurecesse, talvez acabaria com a sua partida. Os novos rumos seriam orientados por Deus que a criou. A Ordem não era sua.
É por isso que os Estigmas de São Francisco, embora rubros de sangue, são ocasião de paz. São marcas próprias de uma crise que lhe purificou o caminho e indicou que a direção era outra. O Francisco aventureiro, que fez a sua parte pacificando guerras, anunciando a boa-nova em praças, passou. Uma nova fase em sua vida foi necessária. A do cuidado, do carinho, do olhar para a vida toda e perceber o quanto Deus havia sido generoso para com ele mesmo, ao ponto de na sua morte olhar para trás e desejar começar de novo. E também pediu desculpas ao irmão corpo, de quem não cuidou tanto assim. E até se deu ao luxo de querer comer os docinhos preferidos da irmã Jacoba.
A crise vivida por Francisco deixou-lhe a marca das chagas e se tornou um novo capítulo em sua história de vida. Quem sabe as nossas crises sejam também isso. Elas nos deixarão marcas, feridas, dores. Mas isso pode se transformar em purificação e novo caminho.
Frei Gabriel Dellandrea
Imagem ilustrativa: https://www.capuchinhos.org/franciscanismo/sao-francisco-de-assis/impressao-das-chagas-de-s-francisco-de-assis