Entrevista: “São Francisco nos convida a sermos a mudança que desejamos”

Desde o início da pandemia, os religiosos franciscanos lideram ações de combate a fome nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo. Para isso, contam com a ajuda de inúmeros voluntários, como a jovem Ana Cláudia Daldon, que não mediu esforços para levar adiante a vivência da espiritualidade franciscana e ajudar quem mais precisa. E é por isso que a edição do “Em Fraternidade” deste mês de novembro tem a alegria de recebê-la.

Natural de Itu, interior de São Paulo, Ana atualmente reside na Áustria e trabalha com assessoria de viagens internacionais, tendo como foco a criação de roteiros personalizados com a finalidade de proporcionar aos viajantes uma vivência e uma imersão na cultura local. “Essa prazerosa função me possibilita unir três grandes paixões: o jornalismo, viagens e trabalhos sociais”, revelou.

Para ela, é preciso romper com os muros que nos separam, sejam eles sociais, econômicos, religiosos ou até mesmo geográficos. “Creio que nunca tenha sido tão essencial assumirmos a responsabilidade de nos colocarmos a caminho, de nos certificarmos como está o outro lado, se perguntando: posso contribuir? Posso ajudar? Posso ser útil? Ou até mesmo para dizer: preciso de você”, destacou.

Ao falar sobre o voluntariado do Serviço Franciscano de Solidariedade, com bom humor e um sorriso largo no rosto, Ana afirma com convicção: “Os anos passarão e jamais esquecerei a dedicação, o bom humor, o desejo de transformação, o brilho nos olhos e o ombro amigo que essas pessoas sob sol, sob chuva, sempre nos trouxeram. Gratidão“, evidenciou. 

Nesta entrevista, Ana Daldon partilha de sua trajetória, especialmente estando na linha de frente do voluntariado da “Tenda Franciscana”, no Rio de Janeiro.

LEIA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:

Conexão Fraterna: Conte-nos um pouco sobre quem é você, por onde andou, o que já fez, sua profissão e suas principais motivações de vida.

Ana Daldon: Meu nome é Ana Claudia, nasci em Itu, interior de São Paulo e aos 19 anos me mudei para Alemanha para um intercâmbio de um ano na cidade de Colônia. Após essa experiência, diversos cursos concluídos e algumas provas para ingressar em universidades da Alemanha e da Áustria, recebo a possibilidade de iniciar meus estudos na Universidade de Viena, me mudo então para Áustria e inicio lá minha graduação em Ciências da Comunicação com foco em Desenvolvimento Internacional, onde também a concluo e vivo até hoje – pelo menos até o início da pandemia-. 

Ana em uma de suas viagens por Los Angeles, California (lado esquerdo) e Fortaleza, Brazil (lado direito)

Trabalho com Assessoria de Viagens Internacionais, tendo como uma das minhas principais funções criar Roteiros Personalizados focados em proporcionar aos viajantes uma vivência e uma imersão na cultura local. Essa prazerosa função me possibilita unir 3 grandes paixões: o jornalismo, viagens e trabalhos sociais.  Aprecio uma vida com relações sólidas, mas em movimento, sendo assim tenho muitas motivações de vida que influenciadas por lugares e necessidades distintas se renovam constantemente. Porém, acredito que a maior dessas motivações é estar sempre procurando construir pontes entre mundos diferentes ou às vezes até então intocáveis.  O fato de desejar ser muito feliz, mas acreditar plenamente que minha felicidade só será possível quando a do próximo também acontecer, me motiva a viver em função de querer construir um mundo mais próspero e mais justo, talvez seja essa uma motivação utópica, mas a mesma costuma determinar a minha direção, e essa sim é concreta. 

Conexão Fraterna: Como você chegou até o Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS) e há quanto tempo você está atuando diretamente na linha de frente da Tenda Franciscana?

Ana Daldon: Chego no Brasil em fevereiro, dias antes do lockdown ser decretado na Áustria e todos os vôos para Europa serem repentinamente cancelados. De repente é final de março, estou em Itu procurando como contribuir, como ser útil diante da situação que estávamos vivendo e uma forte e sagrada intuição me leva a conhecer o Serviço Franciscano de Solidariedade, o Sefras. Tal intuição é materializada após ler um artigo em um jornal sobre o aumento da população em situação de rua no centro de São Paulo, a necessidade do engajamento da população e a descrição de que “algumas pessoas enganavam a fome tomando água“. O Sefras era a única instituição presente naquele cenário. Desde o primeiro contato por doações pontuais não nos separamos mais.  Minha relação de proximidade com o Sefras se estabelece através de um suporte estratégico no setor de Desenvolvimento Institucional, onde o lançamento da Tenda Rio de Janeiro era uma das pautas vigentes. Nesse momento, eu ainda flexível por não poder retornar para Europa pela falta de vôos, prontamente me disponibilizo para acompanhar presencialmente o processo inicial da Tenda carioca. O suporte oferecido de 10 dias se transforma numa intensa jornada – talvez uma das mais lindas da minha vida – de quase 6 meses atuando na linha de frente.

Logo nos primeiros dias no Rio de Janeiro, quando tudo parecia alinhado tenho a possibilidade de retornar para Áustria e me vejo forçada a tomar a decisão entre ficar no Brasil ou perder o vôo de retorno, nesse momento peço discernimento e sigo. Um mundo novo se abria. A atuação na linha de frente não me mostrava uma realidade muito diferente de outras, mas sim despercebida, ignorada. A rotina que aos poucos se estabelecia entre o Convento Santo Antônio, o Largo da Carioca e a Sede em Botafogo passa a demandar um engajamento maior, o grupo de voluntários crescia a cada dia assim como o número de assistidos também.  As conversas, as histórias partilhadas, as sugestões dadas, as palavras de esperança ouvidas e oferecidas, o alimento usado como um instrumento de acesso à essas centenas de pessoas passa a fazer mais e mais sentido, me trazendo coerência de viver, exatamente de acordo com o que procurava. Reconheço assim que era necessário permanecer, que minhas prioridades não eram nada diante daquela realidade que me havia sido apresentada. Esqueço o vôo e fico.

Conexão Fraterna: Qual a importância de rompermos os muros que nos separam, sejam eles sociais, econômicos, religiosos ou até mesmo geográficos? Como sermos pontes?

Ana Daldon: Só quem vive a beleza, a poesia de conhecer profundamente os dois lados de uma ponte poderá saber quão importante essa construção é. Porém, vivemos dias desafiadores, onde não é mais suficiente desejar conhecer os dois lados, é necessário conhecê-los. Creio que nunca tenha sido tão essencial assumirmos a responsabilidade de nos colocarmos a caminho, de nos certificarmos como está o outro lado, se perguntando: posso contribuir? Posso ajudar? Posso ser útil? Ou até mesmo para dizer: preciso de você!

Como sermos pontes? Nessa experiência com o SEFRAS descobri mais do que nunca a necessidade e a importância de antes de pensarmos na construção, sabermos primeiramente nos desconstruir, “usando palavras somente quando necessário”. Enxergar, ouvir, sentir, ser instrumento, fazer parte do processo.

A construção de uma ponte geralmente se dá através de relações sólidas, especialmente quando há o interesse de transformar e de ser transformado. Portanto para construirmos é importante escolhermos, estar presente com o coração, acredito que somente assim estaremos preparados para romper qualquer muro que possa vir a nos separar. 

Conexão Fraterna: Você já havia tido contato com a espiritualidade franciscana antes? Quais as suas impressões e aprendizados com São Francisco e com os franciscanos?

Ana Daldon: Apesar de sempre ter tido alguns ensinamentos e a oração de São Francisco quase que como um mantra em minha vida, nunca havia tido a oportunidade de conhecer ou conviver de maneira tão próxima com a espiritualidade franciscana. Os aprendizados são infinitos, principalmente pelo grande presente do convívio próximo com franciscanos e freis como Frei Diego e Frei Marx que vivem o carisma em sua mais plena essência.  Entre os maiores aprendizados está o olhar a partir da profundidade, o estilo de vida, e o exercício de primeiro fazer o que é necessário. Sinto São Francisco nos convidar a sermos a mudança que desejamos e necessitamos, a vivermos de forma coerente com nossas convicções.

Conexão Fraterna: Você poderia nos contar uma experiência que mais te marcou ao longo desses últimos meses?

Ana Daldon: Levando em consideração as experiências diárias e significativas que temos vivido desde o início, seja através das histórias de superações, das alegrias, das iniciativas solidárias dos voluntários, da euforia da juventude, da sabedoria dos mais velhos, dos ensinamentos dos religiosos, do carinhos dos assistidos, dos colaboradores, dos benfeitores, dos parceiros e o desejo de transformação pautado no amor fez com que criássemos uma experiência única, assim seria quase impossível selecionar somente uma experiência marcante, porém acredito que especialmente dois pilares construídos durante esse período foram essenciais para podermos vivenciar todos os outros momentos:

1. EXPERIÊNCIA EM FRATERNIDADE

Partilhar, superar as mais fortes emoções, fossem elas positivas ou não, só foi possível como foi, por termos vivido em fraternidade.  Uma “quase” fraternidade diferente, formada por freis, por voluntários e voluntárias, cada um assumindo seu papel e todos apaixonados pela mesma causa e com o compromisso comum de servir, estando todos os dias de domingo a domingo de manhã até a noite à disposição daqueles que de nós precisassem. Assim, despretensiosamente fundamos uma rede de apoio, uma grande família onde muitas vezes nossas mais profundas conversas aconteciam somente através de olhares, isso quando não encerrávamos a noite com nossa hospedaria cheia e as mais ricas e interessantes conversas sobre a vida, sobre os anseios e o desejo de construirmos um mundo melhor.

2. VOLUNTARIADO INCANSÁVEL

Ainda procuro palavras para demonstrar meu respeito e admiração por esses voluntários e voluntárias providos de tamanha generosidade, que incontáveis vezes ignoram seus problemas, superam desafios financeiros, se organizam e vem de longe, muito longe para servir, conscientes de que sem esse suporte não existiria a ação na dimensão que existe, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. 

Muitas vezes, nos dias mais exaustivos, nos quais nós que estávamos todos os dias presentes poderíamos talvez sentir o peso da demanda era exatamente quando chegavam com a recarga de energia certa, perfeita! A vida se reestabelecerá, os anos passarão e jamais esquecerei a dedicação, o bom humor, o desejo de transformação, o brilho nos olhos e o ombro amigo que essas pessoas sob sol, sob chuva, sempre nos trouxeram. Gratidão! 

Conexão Fraterna: Neste sentido, como a comunicação religiosa pode ajudar na difusão do carisma franciscano?

Ana Daldon: No meu ponto de vista, a comunicação religiosa especialmente como é exercida pelo Conexão Fraterna serve como um essencial instrumento de identificação, abrindo portas para aqueles que talvez vivam de acordo com o carisma, mas não necessariamente disponham de uma formação mais profunda. Assim podem sentir-se acolhidos e vir a fazer parte desse encantador mundo solidário.

Além disso, temas abordados pelo Papa Francisco, como por exemplo na recente Encíclica Fratelli Tutti, são extremamente relevantes e merecem ser discutidos amplamente. Comunicar é partilhar, partilhar é aproximar, aproximar é viver a fé em sua mais pura essência.

Conexão Fraterna: A sua experiência como voluntária vem de antes do SEFRAS?

Ana Daldon: Sim, a importância de se doar sempre foi muito incentivada em minha família, principalmente pela minha mãe. Me lembro quando ainda criança, e mais tarde adolescente quando já participava de grupos de jovens criando projetos solidários, depois ações com amigos, participei também de ações da ONG Kindernothilfe Österreich, trabalhei como jornalista tradutora de alemão/português em visita à projetos sociais em Fortaleza, Brasília e Simões Filho, estive presente em um dos momentos mais críticos de 2015 em Viena, quando do dia para noite chegaram nas estações ferroviárias depois de meses de caminhada milhares de refugiados vindos de diferentes países, enfim, a importância de estar atento, de ver além, na expectativa de amenizar pelo menos um pouco a dor do outro  sempre foi uma constante em minha vida.

Conexão Fraterna: Que mensagem você deixaria para alguém que sonha em ser um voluntário ou que acredita em um mundo melhor?

Ana Daldon: Começar! Seja fiel à sua intuição, procure algum grupo, alguma organização, instituição ou mesmo amigos que tenham propósitos em comum e comece. Meu conselho pessoal hoje: procure o Sefras e esteja preparado(a) para uma “viagem sem volta”, talvez a mais linda que viverá!

Se permita.

Se permita ser livre,

Se permita se desconstruir, 

Se permita começar do zero,

Se permita falar,

Se permita ouvir,

Se permita seguir sua intuição,

Se permita seguir seu coração,

Se permita seguir sua vocação. 

Se permita ser feliz!

Porém, acima de tudo, se permita priorizar a necessidade do outro quando reconhecer que as suas próprias necessidades podem esperar.


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Fotos: Acervo pessoal de Ana Daldon

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