A Família Franciscana do mundo todo celebra neste dia 17 de setembro a Festa da Impressão das Chagas, também chamada de Estigmas de São Francisco. Foi em profunda contemplação no Monte Alverne que o Santo de Assis recebeu no corpo as chagas da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Santo de Assis viveu em contínua busca da imitação de Jesus Cristo. O Alverne correspondia ao seu ideal e às suas aspirações. A ânsia e o desejo de Deus atingem o cume do amor e da dor e na manhã do dia 14 de setembro de 1224 os céus se abrem e Cristo crucificado desce ao Monte Alverne na forma de um serafim.
O fascínio que o Monte Alverne suscitou em Francisco continua se repetindo hoje. Por isso, nesta memorável data, o franciscano Frei Jorge Henrique Lisot, uniu-se a nós para apresentar um Francisco estigmatizado, mas que fez a revolução do amor. “Francisco nos encoraja a doar também a vida, a fazer a experiência cristã. E experiência, no rigor da palavra, é isso: conhecer fora do perímetro, passar pelo perigo. E quem se arrisca por trilhas novas sempre ganha um arranhão ou cicatriz para contar a história. Os estigmas são os sinais de quem passou pelas mortes que contornam a vida, abrindo veredas no grande sertão”, revela o jovem frade.
LEIA SUA REFLEXÃO NA ÍNTEGRA
Porque nasci e cresci numa paróquia franciscana, desde muito cedo me acostumei com aquela roupa marrom que depois aprendi a chamar de hábito. Entre a figura de Antônio de Pádua – recebida de meus antepassados – e as histórias de Francisco, contadas pelos frades da modesta mas alegre paróquia de Itaporã-MS, pude crescer – as vezes mesmo sem notar – como um jovem franciscano.
Quando adolescente, nos cuidados de meu pároco Frei Rogério para que fôssemos realmente franciscanos (jovens franciscanos, coroinhas franciscanos, paróquia franciscana, tudo franciscano e, de preferência, marrom rs) pude conhecer mais de perto esta espiritualidade e o modo de vida que depois abracei e agora vivo.
Dentre os fatos da vida do Pobrezinho de Assis, um sempre habitou meus pensamentos e foi lugar de visitação, motivo de pensamentos e causa de inquietação: os estigmas de São Francisco. E é exatamente sobre isso que quero conversar com você, irmão e irmã leitor(a), visto que hoje nossa família celebra o dia em que Francisco recebeu em seu corpo os sinais da Cruz do Senhor.
Próximo da festa da Exaltação da Santa Cruz, retirado e silencioso, olhando o mundo e sua própria história de cima, no alto do Monte Alverne, perscrutando sempre de novo o Evangelho, Francisco recebeu de Deus em suas mãos, nos pés e no lado, os sinais dos cravos que estão também no corpo de Cristo.
Em fases diferentes da vida pude pensar neste fato sob vários ângulos. Pensar no sofrimento que deveria suportar, em jejuns e abstinências que deveria fazer, ou no amor que desejava nutrir por Jesus Cristo a ponto de me parecer com ele. Tudo isso, no entanto, eu imaginava de uma forma muito abstrata e/ou poética e, ao mesmo tempo, sem enxergar algo que de mais fundamental fazia a experiência de Francisco ser possível.
O que – me perguntava, então – faz um homem rico abandonar sua comodidade? Faz alguém saudável cuidar dos leprosos? Um filho amado e tranquilo se submeter a dureza de uma vida fraterna e itinerante? Por muito tempo eu respondia estas questões com uma palavra: amor! Mas o senso crítico e as pancadas que a vida dá, aos poucos, me fizeram perguntar: Quem busca a dor? Quem ama os inimigos? Quem dá de seu tempo aos outros, sendo a vida tão breve? Quem ama morrer? E então eu descobri que não sabia amar ou, ao menos, não era capaz de amar… que escândalo! Um frade que incapaz de amar!
Mas o que fazia Francisco ser capaz de amar? Isso me inquietava… O que fez ele pedir a Deus no Alverne que, antes de morrer, lhe permitisse sentir a dor e o amor que motivou Jesus a se entregar na cruz?[1]
Então, entre a minha paciência e a paciência de Deus, pelos caminhos que só Ele conhece, eu pude descobrir que aquilo que motivava Francisco não era a dor pela dor, a cruz pela cruz e a humildade em si mesma. O Cantor das Criaturas se tornou este que conhecemos e amamos porque um dia se encontrou com Cristo, se descobriu amado por Ele ainda antes de ser convertido e acreditou na Boa Notícia da Ressurreição. Francisco se tornou capaz de amar por dois motivos: (i) porque, pedindo ao Senhor que iluminasse as trevas do seu coração[2], foi iluminado pela ressurreição de Cristo e entendeu que já não precisava temer a morte em nenhum aspecto e, por causa disso, (ii) se reconhecendo filho de Deus em Jesus Cristo, se fez irmão de todos, sem julgar ninguém.
Deste encontro, iniciando uma vida de conversão, Francisco viu pouco a pouco (step by step) seu mundo converter-se naquele Jardim da manhã da Páscoa[3]. Um jardim que recorda o paraíso[4], onde ele mesmo era Cristo com Jesus Cristo. Ele e Cristo, unidos. É isto que fala os textos franciscanos, que desde o encontro com o crucificado de São Damião, Francisco trazia a imagem da Cruz em sua alma.[5]
Dai, notamos que só pode amar aquele que não teme mais a morte: foi isto que o Jovem de Assis experimentou. Isso que o tornou capaz de amar, que o levou à pobreza, ao cuidado da Casa Comum e a uma vida de simplicidade: a fé em Cristo que se encarnou, morreu e que, ressuscitando, ressuscitou o ser humano nele. Isso fez Francisco chegar ao extremo de chamar até a Morte de Irmã[6].
A festa que celebramos hoje – que está ligada a festa da exaltação da Santa Cruz – não faz memória de um Francisco sofredor, amante de humilhações, passivo frente à vida, porque Cristo não é um derrotado. Ao contrário, os estigmas de São Francisco são – para nossa família franciscana – o sinal-presença de Cristo Ressuscitado[7]. Francisco está entre nós como Cristo no meio dos apóstolos, no dia da Ressurreição. Quando estamos paralisados pelo medo, quando nossos trabalhos estão meio capengas e nós nos desanimamos, ele entra em nosso meio[8] e mostra as mãos e o lado[9] de Cristo, que não está mais no sepulcro, que não se encontra no cárcere da morte, mas está ressuscitado, vivo para sempre!
Esta experiência de São Francisco, embora pareça tão distante, ao contrário, está mais perto de nós e é mais concreta do que imaginamos! Digo isso porque também recebemos em nós estes sinais da paixão de Jesus. Participamos de sua morte quando, sonhando com um mundo melhor, doamos a nossa vida em nossas comunidades, quando choramos e trabalhamos pelos desfavorecidos e com eles, quando respeitamos os outros em suas diferenças e reconhecemos que este outro é pessoa e não rótulos ou objetos.
Quantos de vocês que estão lendo este texto, por exemplo, não assumiram a cruz dos moradores em situação de rua em uma das tendas franciscanas que distribuem alimentos? Na defesa da Casa Comum, na acolhida educada e amorosa na porta da comunidade, nas artes, no jornalismo que promove a verdade, no levantar da cadeira do ônibus em favor de alguém mais velho… em cada detalhe, enquanto assumimos este morrer, reacendemos nos outros a esperança de que se pode ter vida e vida plena, respeito e dignidade, de que Deus nos ama e quer nos acolher.
Francisco nos encoraja a doar também a vida, a fazer a experiência cristã. E experiência, no rigor da palavra, é isso: conhecer fora do perímetro, passar pelo perigo. E quem se arrisca por trilhas novas sempre ganha um arranhão ou cicatriz para contar a história. Os estigmas são os sinais de quem passou pelas mortes que contornam a vida, abrindo veredas no grande sertão.
Por isso, enquanto celebramos o dia em que nosso amado irmão/pai São Francisco recebeu os sinais da paixão, desejo que a esperança de cada um que lê estas palavras se reacenda. Que nesta festa, Francisco nos mostre os sinais da Páscoa vitoriosa de Cristo que ele recebeu em seu corpo e que esta páscoa anime a vida da Igreja e a nossa juventude franciscana, de modo que aconteça aquela revolução do amor que tantas vezes, sonhando, cantamos!
REFERÊNCIAS:
[1] Cinco Considerações sobre os Estigmas, n. 3.
[2] Oração diante do Crucifixo
[3] Jo 19, 41; Jo 20, 15.
[4] Gn 1 – 3.
[5] Na LTC 5, após ouvir do Crucificado a palavra “Vai e reconstrói a minha Igreja”, o texto diz que “desde aquela hora, seu coração de tal modo ficou ferido e derretido ante a memória da Paixão do Senhor, que sempre, enquanto viveu, levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus.
[6] Cântico das Criaturas.
[7] O hino que se canta na oração de vésperas da Festa dos Estigmas diz que Francisco se acende em chama ao pé da Cruz, feito um círio, em cuja cera se imprime o martírio do próprio Cristo. Assim, nota-se o caráter pascal do que se recorda. O círio, esta grande vela que se acende na Grande Noite da Páscoa, tem as marcas das chagas de Cristo, mas é sinal da sua ressurreição, é a luz que ilumina as trevas daquela noite.
[8] Lc 24,36.
[9] Jo 20,20.
Ilustrações de Sofia Novelli