Fé e Política: O ser Franciscano e o discernimento político

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Queridas leitoras e leitores, em meio de um ano extraordinário da humanidade, nos deparamos com mais uma questão que nos exigirá atenção em 2020: eleições municipais. Não que devamos olhar para esse viés da vida apenas em ano eleitoral, ou como uma coisa alheia do nosso cotidiano, não! A política é coisa para se viver diariamente, para se dialogar em todos os espaços, com todas as pessoas, inclusive com as que divergem da nossa opinião. 

Há alguns anos as discussões estão cada vez mais presentes no meio religioso, em especial por candidatos e políticos se posicionarem a agir em nome da fé, o que nos exige uma criticidade maior para discernir os discursos. Infelizmente, também com o aumento da consciência política do povo através da exposição de opiniões, em especial entre os mais jovens, também se acentuou o dualismo como centro das discussões. A polarização se acentuou de maneira considerável. A mente humana, acostumada com esse dualismo (direita vs esquerda, preto vs branco, luz vs sombra, bem vs mal) foi tendenciosa com pouco espaço para falar de outras possíveis maneiras de fazer política. Crimes políticos de diversos partidos foram alavanca para um cenário de violência, fake news, escândalos e incertezas para a população geral.

Nós cristãos franciscanos não podemos estar alheios a esses acontecimentos. Quando optamos por viver nos passos de São Francisco de Assis, é também o professar nossa fé na práxis, viver um estilo de vida especifico. Nos posicionamos de tal maneira a celebrar a vida como nosso fundador Francisco nos ensina. Celebrar e defender, toda forma de vida, apreciar o ser humano tal como filho e criação de nosso Pai do céu. Isso me faz ocupar um lugar de posicionamento político na vida. Não posso me manter alheia diante de questões que ferem o ser humano, me coloco num lugar de me posicionar contra o armamento, contra a corrupção, contra a violência e qualquer cultura de morte. Não há como eu professar minha fé cristã defendendo a cultura de morte, segregacionista e de desigualdades sociais. Hoje dialogamos de forma a entender que as decisões de cunho civil influenciam diretamente na vida de todos, cristãos católicos ou não, e se sou a favor da vida (pois Cristo veio para que todos tenham vida e vida em abundância) eu preciso sim me posicionar nos espaços que estou sobre questões que atingem aos meus irmãos e a mim.

Para esse falar desse assunto tão necessário, esse mês trouxemos para a coluna alguém que já esteve por aqui antes, e que consegue falar com profundidade do tema, nosso amigo Carlos Neto. A conversa foi entre dois grandes amigos, e rendeu texto reflexivo e propositivo.

Carlos Neto iniciou a coluna Diálogos Fraternos que hoje é comandada por Mariana Rogoski

MARI: Durante muito tempo ouvia-se o discurso: política e religião não se discutem. Hoje vivemos num cenário diferente onde conversas sobre esses temas acontecem em todos os espaços, e inclusive se relacionando entre si. Historicamente, como você observa essa mudança de comportamento da sociedade?  

CARLOS: Gostaria de começar sugerindo uma análise breve do verbo “discutir”. Uma discussão pode ser desde uma argumentação, uma análise detalhada acerca de um tema, até uma contenda, uma briga ou uma defesa acalorada de ideias. Acredito que a primeira definição seja a que mais se aproxima do conceito de discutir religião e política que Jesus nos propõe nos Evangelhos. Se observarmos como Ele nos ensina a converter a ordem vigente, por exemplo, quando foi questionado pelos fariseus sobre o trabalho no sábado (Mt 12, 1-8), veremos como devemos discutir esses temas na nossa sociedade hoje. O Evangelho apresenta Jesus debatendo política e religião com os fariseus. Os fariseus eram uma espécie de partido político no tempo de Jesus, em que religião e poder político eram intrinsecamente associados. O que acontece hoje, na minha opinião, é uma perversão da mensagem de Jesus, na tentativa de aproximar a fé do poder político novamente, exercendo domínio sobre povo. E claro, também uma adesão à definição de “discussão” diferente da Dele. As discussões sobre política e religião de hoje ganharam tons de ironia e agressividade, isso não tem nada a ver com a mensagem de Cristo, que é direta e cheia de amor. Esse comportamento farisaico é o discurso de pessoas que colocam seus interesses pessoais afrente do Projeto do Reino. Jesus apresenta a Boa Nova do Reino de Deus, que para se concretizar não pode admitir as injustiças e explorações do sistema político-religioso da época. Por isso Ele argumentava com as autoridades em defesa dos marginalizados. Essa é a forma de discutir de Jesus, e essa deve ser a nossa também, que somos seus discípulos. 

MARI: Após o rompimento do Estado com a Igreja Católica formou-se o que hoje conhecemos como Estado Laico. A Igreja no Código de Direito Canônico afirma: Cânon 287, parágrafo 2º: “Os clérigos não podem ter parte ativa nos partidos políticos e na direção de associações sindicais, a não ser que a juízo da competente autoridade eclesiástica, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum.” Isso não quer dizer que precisamos estar alheios da vida política civil, até porque as decisões tomadas nas tribunas influenciam diretamente os fieis leigos e clero. Jesus sempre se posicionou em defesa dos mais pobres e vulneráveis, um indicador político importante para nossos dias. Qual sua opinião sobre a relação Igreja (clero) e Estado? 

CARLOS: Esta é uma questão delicada de ser abordada, pois, eu não pertenço ao clero, então minha resposta fica apenas à título de opinião mesmo. Eu creio que a redação do Cânon 287, bem como do 285 tratem da proibição de membros do clero de assumir cargos públicos e eletivos, e da participação ativa em partidos políticos, o que eu considero muito adequado. Creio que para promover uma boa discussão política, livre de preconceitos e de fake news, com a profundidade essencial para essa discussão, não há necessidade de ela perpasse o partidarismo. Em uma democracia saudável isso é muito óbvio, mas não conseguimos ter esta clareza no contexto em que vivemos. Esse espaço de participação é destinado aos leigos, essa é a nossa vocação na sociedade, e como Igreja que somos, é nossa forma de evangelizar. A questão relevante não é a proibição do clero, mas talvez a falta de protagonismo do leigo. O leigo é aquele que pode levar a presença da Igreja aos espaços públicos, e os espaços públicos para dentro da Igreja, e nesse contexto, enriquecer a discussão política até mesmo com as nuances do partidarismo. No entanto, há um dever de todo cristão, e principalmente do clero, que é denunciar as injustiças e abusos, principalmente se estes forem praticados pelo Estado ou seus representantes. O clero não pode se abster dessa obrigação evangélica. 

MARI: A diversidade de carismas que existe na Igreja Católica e se posiciona de diferentes maneiras sobre determinados assuntos, assim como entre diferentes religiões. Desde 2013 os tais posicionamentos se polarizaram e os extremismos tomaram conta de calorosas discussões. Cristãos ou não, a discussão é em defesa do cidadão de bem (e quem é o cidadão de bem?). A luz do evangelho, como nossas pastorais e carismas diversos da Igreja Católica podem caminhar com seus fiéis? 

CARLOS: Veja bem, penso que a Igreja não pode deixar de tocar nas feridas que essas discussões acaloradas têm provocado. Gostaria muito de que esse assunto fosse tratado com clareza e que fosse resolvido com diálogo. Mas entendo que a realidade no momento é delicada para essa abordagem. Sobre essa discussão acerca do cidadão de bem, vejo como uma arrogância tremenda alguém se classificar como sendo “de bem”, visto que todos somos pecadores. Se existem os “de bem”, então existem os que são “de mal”, e a realidade humana é muitos mais profunda do que essa dicotomia. Por fim, se formos seguir à luz do Evangelho, como você mencionou, existe apenas um caminho para percorrer, que é Cristo. Pode haver diversas maneiras diferentes de percorrer o Caminho, mas ele é único. Qualquer coisa que te afaste do caminho vai te levar para longe do Cristo, e a mensagem Dele é muito clara, não há espaço para dúvidas. Ele andava com pessoas marginalizadas como prostitutas e cobradores de impostos, que não seriam classificadas como “cidadãos de bem” nos dias de hoje. Na minha opinião, este é o caminho. 

MARI: São Francisco de Assis abraçou a dama pobreza como modelo de vida e descobriu no passar do tempo que a pobreza não é um indivíduo, mas um lugar social. Percebe isso a partir de uma postura de transformação de dentro para fora. Não quer fazer parte da estrutura em que vive sua família e amigos, sua escolha foi viver contra o sistema da época. É possível relacionar essa postura de São Francisco com a política atual? 

CARLOS: Sua referência à São Francisco me faz lembrar da passagem em que ele se despoja de suas vestes na presença do Bispo de Assis, e gosto muito do relato contido em LTC 20, 1-10. Esse gesto de Francisco, que se relaciona com a descrição que você fez, é um ato político e também um ato religioso. É um ato político porque Francisco abdica de toda riqueza de seu pai, Pietro de Bernardone, renunciando aos bens do pai em vida e à toda a sua herança. Ou seja, Francisco desvincula seu nome do nome de seu pai, e o nome exercia uma influência importante na época. Mas também é um ato religioso, pois Francisco revela a quem ele passa a se vincular a partir de então, ao “Pai Nosso que estás nos céus”. Francisco renuncia à toda riqueza e poder de sua família para servir ao Cristo pobre. A política atual busca poder e riqueza para atender a interesses pessoais, em detrimento da exploração do povo pobre, chaga de Cristo. 

MARI: Também vemos São Francisco de Assis como o homem que celebrava a vida integral. Ecologia, homem e fé caminham abraçadas num estilo de vida muito diferente da época. O santo de Assis nos ensinou a celebrar a vida em todo sentido. A sociedade vive hoje o poder de escolha da vida, no julgar o nascimento ou a morte do ser humano e de outras vidas e isso faz parte de um processo político construído ao longo de anos. Como o franciscano, cristão, pode refletir seus posicionamentos políticos a luz da escolha pela cultura da vida, não da morte? 

CARLOS: A escolha política do Cristão, e sobretudo do Franciscano, por um sistema de vida e não de morte, deve abranger a vida em todas as suas instâncias. Deve se preocupar com a vida do embrião no ventre de sua mãe, mas também deve buscar garantias de que a sociedade não irá “abortar” essa criança do seu convívio depois que ela nascer. Deve denunciar as condições de vida indignas de milhões de famílias no nossa País, e buscar soluções para essas chagas sociais. Para o cristão franciscano, bandido bom não é o bandido morto, mas sim o “bandido” socializado e apto a exercer seu papel. Um sistema gerador de vida é aquele que oferece oportunidades para aqueles que não tem esperança. O relacionamento com o meio ambiente, para o cristão franciscano, é um relacionamento com a obra prima do próprio Deus, e este não deve admitir que ela seja instrumentalizada em busca de lucro. Destruir a Criação é destruir a própria vida, e os povos originários, marginalizados e oprimidos são os primeiros a sofrer as consequências dessa exploração. Nossa adesão a uma cultura de vida não deve ser seletiva, deve ser integral, de vida para todos. Os que mais morrem, vítimas do nosso sistema político e da cultura de morte instaurada são os mais pobres, os excluídos das oportunidades e das riquezas geradas pela sociedade. 

“Os que mais morrem, vítimas do nosso sistema político e da cultura de morte instaurada são os mais pobres.”

MARI: É preciso além de se posicionar, também denunciar, discutir, reclamar direitos. Acima de tudo, dialogar, portar-se com atitudes de amor, assim como Cristo ensinou, assim como Francisco de Assis fez. Conheço várias pessoas que durante esse processo de polarização política optou pela violência (física, verbal, moral) para defender suas ideias. Na sua opinião, podemos encontrar o equilíbrio e bom senso para essas discussões? 

CARLOS: O diálogo e o respeito são fundamentais para uma profícua discussão política, não existe maneira de avançarmos nessa discussão se não for através do respeito e do diálogo com o diferente. Para que isso se concretize, todos devemos ter a humildade de reconhecer que a verdade não é um patrimônio pessoal, que ela é meu domínio. Mas que a verdade é fruto da comunhão e da partilha de realidades pessoais, é uma construção. Claro, que considero possível o equilíbrio nas discussões sobre política, caso contrário eu teria perdido as esperanças no ser humano. Mas acredito que seja um processo lento e doloroso de desconstrução. Um novo chamado a “reconstruir a Minha casa que está em ruínas”. Temos que ter a coragem de levar pedra por pedra com a humildade de reconhecer nossa fraqueza e nossos erros também. Ser voz profética que denuncia as injustiças não nos libera da humildade e do respeito pelos que pensam diferente. Por fim, acredito que as fake news têm tido um protagonismo devastador nesse processo de diálogo, o que é muito preocupante. Sobre este assunto eu recomendo a leitura do livro da crítica literária Michiko Kakutani, chamado “A morte da verdade”. É um aprofundamento sobre a crise das fake news no processo eleitoral americano.  

MARI: Como o se reconhecer franciscano, influência na sua caminhada sociopolítica e religiosa? 

CARLOS: Ser franciscano me propicia ter um olhar crítico para a situação do irmão, e não aceitar propostas de exclusão e de cerceamento da vida. Ser franciscano me permite despir-me (a exemplo de Francisco), dos preconceitos, das vergonhas, dos medos, das vaidades, para ter um encontro real com o Crucificado, onde Ele se apresenta. Confesso que nem sempre eu O reconheço, e muitas vezes não é fácil me despir, descer do meu status e ter um encontro verdadeiro. Mas quando consigo ser fiel a isso me sinto completo. Ser franciscano me permite caminhar sem medo pelas estradas da vida, sejam elas as periferias sociais ou religiosas. Acima de tudo, me faz ter a convicção de que eu não vou ao encontro do outro para levar Deus até ele, mas sim para com ele entrar em comunhão, e trazer a presença de Deus em nosso meio. 

MARI: Estamos em ano de eleições municipais. Esses votos, em geral, são para candidatos que estão mais próximos dos eleitores, oportunidade de escolherem com mais assertividade seu voto. Qual sua mensagem aos jovens que nos acompanham sobre esse papel da aliança entre fé x política e de que modo isso pode influenciar as urnas? 

CARLOS: Eu diria aos jovens que nos acompanham para estarem atentos às notícias e as propostas de cada candidato. As propostas dizem muito sobre o caráter deles. Embora possa se pensar que sejam apenas ideias, existem muitas intenções por de trás, e esperamos sempre ter propostas de vida, não de morte. Candidatos que se demonstram homofóbicos, racistas, machistas, não representam os valores que buscamos. Candidatos que pregam o medo, e propõem a violência como forma de combate à criminalidade, no mínimo não conhecem a realidade social do nosso País. Se algum candidato propaga notícias falsas, fique atento, ele não merece a nossa confiança. Por fim, eu diria para não se pautar exclusivamente no que a imprensa divulga, nem no que corre nos grupos das mídias sociais, mas que se procure conhecer a verdade dos fatos através de fontes confiáveis, e fazer as escolhas de candidatos moderados, pois o radicalismos muitas vezes nos deixa cegos. Dessa forma, espero que possamos escolher representantes que estejam realmente preocupados com a sociedade e com os mais empobrecidos, e não com interesses pessoais. 

Pautados na vida de Francisco de Assis, na luz dos ensinamentos de nosso senhor Jesus Cristo, um jeito de ser. Cristo que sempre esteve ao lado e em defesa dos que mais precisavam, os excluídos da sociedade, que nos inspire no discernimento político e social. Façamos do diálogo a fonte de justiça social para todos. Façamos de ações concretas uma forma de ser testemunho para o cuidado com o próximo. Façamos de nossa fé a concretude para sermos cidadãos e cidadãs que pensam em favor do coletivo, em especial pelos que mais padecem. E que isso reflita nas urnas e no cotidiano.

Fraternalmente, Mari

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