Acabamos de iniciar mais um tempo forte de nossa fé: o Tempo da Quaresma. Ao longo destes quarenta dias, escutando com mais frequência a Palavra, os fiéis imploram com maior intensidade ao Pai, que lhes ajude a “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”.
A Igreja define a Quaresma, que começa na Quarta-feira de Cinzas e se estende até a Missa da Ceia do Senhor, com a qual iniciamos o Tríduo Pascal, como um Tempo de graça e salvação, concedido por Deus ao seu povo, a fim de preparar com alegria e de coração purificado, a festa da Páscoa. Ao longo deste período, nos empenhamos na vivência pedagógica da penitência e da abstinência, que corrigem nossos vícios, elevam nossos sentimentos, fortificam nosso espírito fraterno, quebram nosso orgulho e nos convidam a imitar a misericórdia do Pai, repartindo o pão com os necessitados.
O itinerário penitencial da Quaresma tem uma dupla finalidade na vida da Igreja:
a) conduzir e acompanhar os catecúmenos que foram “eleitos” e passaram pelos “escrutínios”, e também os catequisandos, até a pia batismal. Esse será o tempo propício da “iluminação” e “purificação”. Pois, nesta fase do processo de iniciação cristã, espera-se dos catecúmenos uma conversão de mentalidade e costume, suficiente conhecimento da doutrina cristã, senso de fé e da caridade, elementos esses que os ajudarão a preparar mais intensamente o espírito e o coração.
b) preparar os fiéis a fim de que possam renovar, com redobrada consciência eclesial, as promessas de sua fé na Vigília Pascal.
Para que fique bem explicito esse itinerário, é necessário que os ministros falem, em suas homilias e catequeses, sobre a dupla finalidade deste tempo, muito bem expressa na Oração do Dia do sábado 5ª Semana da Quaresma:
“Ó Deus, vós sempre cuidais da salvação dos homens e nesta quaresma nos alegrais com graças mais copiosas. Considerai com bondade aqueles que escolhestes, para que a vossa proteção paterna acompanhe os que se preparam para o batismo e guarde os que já foram batizados”.
O Tempo da Quaresma implora pela sobriedade. Por isso, não se usa flores, nem folhagens no altar. A ausência da ornamentação no espaço celebrativo nos fará correr esperançosos até a Páscoa, que se apresentará a nós com seu colorido e flores, nos devolvendo o tom da alegria e da festa.
Durante esses quarenta dias, o canto sofre a ausência do “aleluia” e do “glória”, assumindo um caráter de conversão e penitência. O canto assume um tom de pesar, de tristeza, de angústia. Nas palavras de Reginaldo Veloso, o canto desse tempo é um canto sem flores e sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo” em que nos colocaram os nossos pecados (Sl 130).
Deste modo, os músicos devem ficar atentos à escolha dos cantos que, em seus conteúdos bíblicos, devem convidar à conversão e à penitência, ao perdão, à caridade e à fraternidade.
Cuidem também quanto ao recolhimento dos instrumentos, usando-os somente para sustentar o canto. Por isso, é importante que se escolha apenas um ou dois instrumentos musicais, para que possa nos acompanhar nesse itinerário. Os instrumentos de percussão e outros, podem ser guardados para as solenidades pascais. “É tempo de favorecer o silêncio musical”, nos recorda Irmã Míria T. Kolling, de saudosa memória.
Ainda sobre os cantos, Irmã Míria nos orienta:
Como pudemos notar, tudo, no Tempo da Quaresma, nos conduz à abstinência espiritual. O nosso corpo se abstém de alimentos; nossos olhos se abstêm de contemplar a beleza das flores, que enfeitam o espaço celebrativo; nossos ouvidos abstém-se dos sons dos instrumentos; nossos lábios abstêm-se do canto do “glória” e do “aleluia”; nosso coração se abstém da alegria do coração. Toda essa abstinência, quer fazer-nos adentrar na estrada do Êxodo e nos conduzir até aos pés da montanha sagrada, para que, humildemente, tomemos consciência de nossa vocação de povo da aliança.
Ao longo desse tempo, voltando-nos para Deus, prestemos mais atenção em cada oração feita pelo presidente da celebração; escutemos mais atentamente a Palavra de Deus e nos empenhemos em imitar a misericórdia do Pai, sempre em relação com os irmãos e irmãs, que nos acompanham lado a lado. Afinal de contas, Quaresma é tempo rico de entrar a fundo no mistério da nossa Fé.
Um abraço fraterno e bom tempo quaresmal!
Frei Zilmar Augusto, OFM*
Frei Zilmar Augusto Moreira de Oliveira é um jovem frade da Custódia Franciscana do Sagrado Coração de Jesus (SP). É Bacharel em Filosofia pela FAE Centro Universitário de Curitiba (PR). Graduando Bacharel em Teologia pela FAJOPA Marília (SP). Pós-graduando em Música Litúrgica pela UNISAL (SP). Atualmente compõe a Equipe de Liturgia e Cantos Franciscanos da Conferência da Família Franciscana do Brasil (CFFB), é membro do Corpo Eclesial de Letristas e Compositores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e assessor Diocesano da Música Litúrgica da Diocese de Marília (SP). Se desejar, entre em contato com o autor pelo e-mail: zilmaralgusto@gmail.com
REFERÊNCIAS:
- O termo “mistagogia” vem da língua grega e é composto por outros dois que significam, respectivamente, “mistério” e “guiar, conduzir”. Assim, “mistagogos” quer dizer “quem conduz para dentro do mistério”. BUYST, I. e FONSECA, J. Música ritual e mistagógica. 1.ed.São Paulo, Paulus, 2008 – Cf. introdução. P. 07
- Oração do Dia do 1º Domingo da Quaresma. Missal Romano, p. 182.
- Missal Romano. O Tempo da Quaresma. p. 105. n. 28.
- Prefácio da Quaresma, II. Quaresma, tempo de conversão. Missal Romano, p. 415.
- Prefácio da Quaresma, I. Sentido espiritual da Quaresma. Missal Romano, p. 414.
- Prefácio da Quaresma, IV. Os frutos do jejum. Missal Romano, p. 417.
- Prefácio da Quaresma, III. Os frutos da abstinência. Missal Romano, p. 416.
- Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA). p. 23. §21s. Paulus. São Paulo, 2016.
- Sacrosanctum Concilium, n. 109.
- Oração do Dia do sábado da 5ª Semana da Quaresma. Missal Romano, p. 219.
- Paschallis Sollemnitatis. A preparação e celebração das Festas Pascais. p. 13. n. 17. Brasília, Edições CNBB. 2018.
- FERREIRA, Eurivaldo S. O canto litúrgico quaresmal. Caderno de Partituras e Cifras da CF 2018. Edições CNBB. p. 7.
- VELOSO, Reginaldo. Introdução ao Hinário Litúrgico da CNBB, Volume II – Ciclo da Páscoa, São Paulo: Paulus, p. 7.
- Conferir o repertório litúrgico contido no Hinário Litúrgico da CNBB, NOS CDs gravados pela Paulus: “Liturgia XIII” e “Liturgia XIV e também os CDs da Campanha da Fraternidade, que a alguns anos vem trazendo composições litúrgicas propícias.
- KOLLING, Ir. Míria T. Sustentai com arte a Louvação. A Música a serviço da Liturgia. p. 194. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2011.
- Prefácio da Quaresma, V. O êxodo no deserto quaresmal. Missal Romano, p. 418.