O importante é ser pequeno (Lucas Moura)

“Tinha maneiras simples, era sereno por natureza e de trato amável, muito oportuno quando dava conselhos, sempre fiel a suas obrigações, prudente nos julgamentos, eficiente no trabalho e em tudo cheio de elegância.”

As vinte e sete vozes se esforçam por ressoar num mesmo e único tom. O som do instrumento desponta do interior da capela, como um regente que conduz ao coração da vida a prece dos homens que no frio da manhã se entreolham, sorriem, e rezam. Alguns erram o tom, outros nunca o acertam e o organista, este franze a testa; olha por cima dos óculos e sorri também, há dias, entretanto, que ele não sorri e nem olha por cima dos óculos, finge que tudo está na harmonia do que se é para ser. Provavelmente, nos dias em que mais nos atrapalhamos, Deus sorri conosco.

As manhãs começam sempre embaladas pela força dos salmos. O organista rompe o silêncio da capela dando-nos o tom pelo qual seremos guiados, um frade entoa e se circunscreve o sinal de nossa fé e em coro todos repetimos a mesma invocação. Cada frade, recolhido nos braços de Deus, eleva a voz de seu assento os cânticos e louvores que o Senhor mesmo nos deu por rezar. A comunidade se perde dentro das palavras de Deus, se dissipa e se reencontra na intimidade daquele que nos sabe como realmente somos.

Nos primeiros anos de convento as atrapalhadas eram uma companhia constante, e isto não só enquanto eu rezava. Era extremamente envergonhado, sentia o rosto corar todas as vezes que com mais seriedade um frei se dirigia a mim. Havia um, em especial, que me envergonhava só pela presença. Os cabelos eram brancos, tinha o rosto penetrado pelas rugas, óculos de graus fortes, e muita dificuldade no caminhar, mas a lua também anda devagar, e, no entanto, ela atravessa o mundo. O sorriso era o de alguém que conseguia ser criança outra vez e as mãos, as mãos eram a de um jardineiro que sabia como cuidar da vida. Carregava no bolso um molho de chaves, sua chegada já era pressentível mesmo de longe, isso não diminuía o encanto quando ele chegava às nossas vistas.

Às vezes, nos fins de tarde, eu caminhava no bosque do convento. Gostava de ver o dia indo embora. Tudo ficava como numa fotografia, principalmente porque ele também estava lá, varrendo as folhas que caíam das árvores. Em outras vezes, o via ajoelhado arrancando os matinhos que cresciam no vão das pedras. Ele me via também, mas não dizia nada, continuava tirando os matinhos, com os joelhos no chão. Era um homem de saúde fraca, tratava de um câncer, mas tudo acontecia como se ele convivesse com a fraqueza ao modo de um bom amigo. Seu silêncio era eloquente e mesmo na dureza do olhar morava uma docilidade de poeta.

Sua ausência ainda me fala. Parece que ainda dá de vê-lo ajoelhado no gramado, olhando discreto para trás e sorrindo. Eu já ouvi dizer que qualquer gente que morre, na verdade, não morre não, só começa a viver dentro de nós e que é só encostar a mão no peito pra sentir um outro coração batendo pela gente. Há alguns dias recordamos no refeitório os dois anos de falecimento dele.

Parece-me que neste tempo em que o mundo está tremendamente esquisito, em que ninguém mais acredita nas imposições dos perfeitos; nesta hora em que metade da terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração e um tanto medo eu sinto que o silêncio musical desse velho frade tem muito a dizer. O mundo está meio na metade, creio eu; metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta mesma hora, uma metade do mundo está lutando e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Nestes dias em que a morte e a injustiça moram nos lábios dos que querem ser nossos salvadores, o sorriso do frei faz acreditar que é tempo de se persistir no amor. Creio que ele nunca foi metade, era afinado na inteireza do Mundo, como os tons das orações de todas as manhãs. Ele foi uma música bonita que Deus tocou pra gente, e como toda música boa ele continua nos tocando.

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