Creio que cada um de nós já viu alguém marcar seu corpo para registrar uma paixão, ou um pensamento que lhe é caro – seja relacionado à fé, ao esporte, aos sentimentos -, pois são diversos os tipos de tatuagens e desenhos corporais que a mídia nos oferece como inspiração. Confesso que, com minha covardia, não tenho coragem de traçar algo tão definitivo na minha pele, e espero que as marcas do meu corpo seja fruto das minhas experiências pessoais. Se possível, sem interferência de instrumentos externos.
Porém, na literatura da fé, encontramos uma situação que merece destaque: a impressão das Chagas (ou Estigmas) do Cristo Crucificado em São Francisco de Assis, durante a oração, na manhã de 17 de setembro de 1224, na Quaresma de São Miguel, no Monte Alverne.
São Boaventura, como biógrafo do santo, relata o ocorrido. Resumindo, São Francisco viu a imagem do Crucificado:
“deixando-lhe, dentro, a alma inflamada de seráfico ardor, e, fora, no seu corpo, a imagem do Crucificado, como se o fogo do amor divino lhe tivesse liquefeito as carnes e nelas impresso o selo da sua divina imagem”; e logo os estigmas, nos pés, nas mãos e no lado, além de sentidos, eram percebidos em seu corpo. O amor do Pai Seráfico ao Filho de Deus transformou seu corpo e, como descreve São Boaventura: “adornado com os sagrados estigmas num novo e estupendo milagre por singular privilégio nunca a ninguém até então concedido, desceu do Monte Alverne, levava em si a figura do Crucificado, não esculpida em pedra ou pintada em tábua ou em tela, mas aberta na sua mesma carne pelo dedo do Deus vivo.”
As Chagas de Cristo sempre nos trouxeram o sentimento do Amor que ele viveu materializado no seu corpo. São Francisco de Assis, pela sua maneira de vivenciar este Amor, obteve a graça de sentir, em sua carne, o que isso pode significar.
São Francisco ainda viveu dois anos após receber os estigmas. Sua condição de saúde piorou muito, pois as feridas sangravam e não cicatrizavam; ao contrário do que, para muitos, seria natural – o abandono da fé devido ao sofrimento com a condição de saúde – só fez crescer sua intimidade com o Deus Misericórdia que o tornou ainda menor pela doença física.
O Papa Francisco, a respeito das Chagas do Salvador, ao falar sobre Tomé, (que, ao contrário de São Francisco, acreditou) nos lembra:
“Tomé era teimoso. Ele não havia acreditado ou encontrado fé, precisamente quando tocou as feridas do Senhor. Uma fé que não pode ser mergulhada nas feridas do Senhor não é fé. Uma fé que não é capaz de ser misericordiosa, como as chagas do Senhor, que são um sinal de misericórdia, não é fé: é uma mera ideia, é uma ideologia… Nossa fé está encarnada em Deus que se fez carne, que tornou pecado, que se encheu de feridas por nós. É por isso que, se queremos acreditar seriamente e ter fé, devemos nos aproximar e tocar essa chaga, acariciá-la e também inclinar a cabeça e deixar que outros aliviem nossas chagas”
Vigília de oração na véspera da Festa da Divina Misericórdia, 02/04/2016
O atual “Pedro” ainda nos ensina que “nas chagas dos doentes, nas enfermidades que são impedimentos para prosseguir na vida, há sempre a presença de Jesus, a chaga de Jesus. Há Jesus que convida cada um de nós a acudir, ajudar e curar os doentes”, fazendo das chagas de seus filhos “o lugar teológico de sua ternura” (Audiência Geral, Praça de São Pedro, 28/08/2019).
Sob este prisma, a São Francisco foi dada a possibilidade de experimentar e vivenciar o Amor e a Misericórdia que o próprio Cristo vivenciou na condição humana. Desta forma, somos todos convidados pelo próprio Cristo a fazermos essa experiência de fé.
Como franciscana, impossível não pensar que este convite – de seguir e sentir o Cristo, até suas últimas consequências – também é direcionado a mim… Eu sei, a santidade é uma escolha e está ao alcance de todos. Mas eu seria capaz, sem duvidar, de sangrar e sentir a dor física, por anos, o distanciamento sem perder a ternura, a pureza de sentimentos, a confiança, o amor e o respeito por este Deus, que me propiciaria este momento só para que nos aproximássemos ainda mais?
Paz e bem a todos e boas festas!
Abraço fraterno, Leila Denise.
Créditos da imagem: Composição de azuleijos- Santuário São Francisco em São Paulo.