“[1] escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». [2] Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.”
Assim começa a encíclica Fratelli Tutti. A mais nova encíclica lançada pelo papa Francisco no início de outubro vem refletir sobre a Fraternidade e a Amizade Social e mais uma vez, a inspiração foi São Francisco de Assis. A encíclica está dividida em 08 capítulos: AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO, UM ESTRANHO NO CAMINHO, PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO, UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO INTEIRO, A POLÍTICA MELHOR, DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL, PERCURSOS DUM NOVO ENCONTRO e AS RELIGIÕES AO SERVIÇO DA FRATERNIDADE NO MUNDO. A carta é destinada a todas as pessoas que façam essa reflexão da abertura ao diálogo, um convite a extrapolarmos os muros das religiões, das fronteiras dos países, de disputas políticas, desigualdades sociais e tantas outras que nos dividem e estarmos unidos em prol de todos, pois, todos somos irmãos.
Lançada durante a pandemia do Covid-19, na Europa sendo a 2ª onda de transmissão do vírus e aqui no Brasil ainda tentando diminuir os índices de transmissão e mortalidade, a carta apresenta a dura realidade de exclusões e dramas sociais, mas acima de tudo fala da promoção do diálogo e a cultura do encontro. Em geral, vejo a juventude afinada nesses assuntos, por isso, recomendo a leitura da encíclica, e a aproximação dela para seu cotidiano pessoal e pastoral.
Para falarmos da Fratelli Tutti para as Juventudes, convidei a Ir. Valéria Andrade Leal (@irvaleria) para a partilha desse mês. Ela atua como Assessora Nacional da Juventude do CEPJ da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Conhecida pelo par de tênis “All Star” e o seu hábito escuro da congregação das Irmãs Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, ela está a frente de vários projetos ligados a juventude e sempre conectada nas redes sociais. Alguém que fala para e com as juventudes diariamente.
MARI: A carta Fratelli Tutti foi lançada no dia 3 de outubro, vésperas do dia de São Francisco e assinada em Assis, sob o túmulo do santo. O Papa Francisco explica que o tema remete a fala de São Francisco em um de seus escritos (Admoestações 6,1). Ele também explica que se sentiu estimulado após seu encontro com o “Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb”, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus «criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos». Seu primeiro capítulo tem como título “As sombras de um mundo fechado”, onde denuncia algumas tendências que desfavorecem a fraternidade universal. Nesse sentido, você considera que nossas juventudes estão evoluindo no sentido do diálogo fraterno?
IR. VALÉRIA: Há sinais de esperança. E muitos! De forma geral, as juventudes são mais capazes de acolher o diferente, de dialogar. Entretanto, há o risco de fechar-se em “bolhas”, assumindo posições radicais e excludentes. Como o Papa aponta no primeiro capítulo, há sombras e estas fazem parte do mundo em que os/as jovens estão inseridos. Neste contexto, o diálogo é sempre um exercício. Cresce a pluralidade e as polarizações. Mas acredito que as juventudes são capazes de fazer a diferença e promover mudanças, cada um a partir de si mesmo, em direção à escuta do outro, ao respeito e acolhida. Para isso, precisa estar atenta e firmar sua própria identidade, como insiste o Papa Francisco no texto, mas sem se fechar em mundos paralelos, ilhas de “razão” e certezas únicas. É preciso reconhecer a beleza do diferente, inclusive das diferenças dentro mesmo da Igreja, crescer na paciência para esperar o tempo do outro e a perspicácia de partir sempre do que nos une e não das controvérsias. É um desafio para as novas gerações hiper-conectadas, mas é possível! E os/as jovens são sempre capazes de mudança quando abertos à experiência do amor de Deus que nos envolve e faz reconhecer a dignidade de cada pessoa e vê-la outro como irmão e irmã.
MARI: No segundo capítulo o Papa Francisco trouxe como inspiração a passagem do Bom Samaritano para ilustrar o tema “Um estranho no caminho”. Felizmente esse foi o mesmo tema da Campanha da Fraternidade de 2020 promovido pela CNBB. No Brasil, o tema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” iluminado pela imagem de Santa Dulce dos Pobres trouxe várias reflexões acerca do cuidado mútuo e mais fortemente durante a pandemia do Covid-19. Acredito que o jovem tem essa consciência, movido principalmente pela força de seu protagonismo. Quais ações de solidariedade você tem visto pelo Brasil promovido pela juventude?
IR. VALÉRIA: Há muitos gestos de criativa solidariedade. Vimos campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, vimos iniciativas de atendimentos espirituais e psicológicos via telefone, houve campanhas de incentivo à doação de sangue, confecção e distribuição de máscaras, presença e assistência a asilos, gincanas virtuais com arrecadações de alimentos; cuidados com pessoas em situação de rua; reforço escolar, criação de aplicativos sobre a doença. Há celebrações de DNJs com drive-thru de doações em prol de hospitais, famílias carentes… são inúmeros os exemplos, desde grupos que arrecadaram trezentos reais à toneladas de alimentos. Independente do resultado, cresceram gestos de amor, de solidariedade. Cada grupo percebeu a realidade ao seu redor e lá fez a diferença, lá “cuidou das feridas”, levou esperança, alegria. Desde os menores gestos, os/as jovens mostraram-se capazes de sair de si e se fazer próximo e para doar-se. Isto é lindo!
MARI: A interpretação do significado do diálogo é apresentada na encíclica também pelo ato da escuta. Isso quer dizer, aproximar-se, conhecer, olhar, ouvir e procurar entender. Nossa sociedade hoje é movida pela alta performance, exibição demasiada muitas vezes com a expressão de opiniões, dentro e fora das redes sociais, e sem filtro algum. Como as juventudes podem se precaver dessas atitudes, sem estar excluída do mundo?
IR. VALÉRIA: É necessário cultivar um espírito crítico que nos ajude a ultrapassar as bolhas virtuais. A internet é pensada para filtrar seus interesses e desinteresses de forma que navegando, você encontra informações que cada vez mais confirmam suas opiniões. Isso é terrível! Empobrece, limita a capacidade de reflexão. A criticidade nos ajuda a avaliar os pós e contras de cada opinião, sem desprezar nenhum argumento, mas refletindo sobre estes. Isso nos ajuda a aprender e fazer sínteses. É necessário também o discernimento que além da reflexão, coloca Deus na jogada. Além de nossas opiniões e reflexões, cabe dar espaço para acolher o que “este sinal dos tempos” nos mostra da vontade de Deus para nós. Outra dica é exercitar-se na prudência e se colocar como mediador. O Papa ensina aos líderes religiosos como serem mediadores (Cf. n. 284). Este é um ensinamento para cada cristão. Sobretudo nas redes sociais, todos podemos assumir a postura de mediadores e refletir: esta minha opinião, publicação, comentário beneficia a quem? Leva a que reflexão neste ambiente? Isso ajuda a refletir antes de cometer enganos ou promover discussões que levam a lugar nenhum e geram divisão. É bom também não publicitar o que não faz bem. Se a busca na rede é aparecer, vamos dar menos atenção ao que divide e promover o que nos torna mais humanos, mais fraternos.
MARI: Papa Francisco na Fratelli Tutti aborda temas como Política e o Ecumenismo Religioso em favor da paz, temas que muito são evitados por muitas pessoas, pois segundo o ditado “religião e política, não se discutem”. Porém, vemos uma juventude cada vez mais engajada em causas sociais pensando no bem comum, assim como dialogando e se engajando em causas independente do credo. Na sua opinião, quais seriam os fatores que levam essa juventude a tomar essas atitudes?
IR. VALÉRIA: O inconformismo que caracteriza a juventude. Isso é lindo! O Papa Francisco fala de inquietude (CV 138) que abre caminho à ousadia. Há também a sensibilidade para o outro e o desejo de viver “num bom lugar” em que todos compartilham da mesma alegria, da bondade e da beleza. O jovem está sempre aberto a mudar o mundo, pois olha sempre além. É verdade que se corre o risco de ficar “no sofá”, por isso é importante que os que se deixam inquietar possam instigar a outros a também buscarem algo além, a fazer a diferença. Os grupos organizados são formas de despertar os jovens para descobrirem seu potencial. São oportunidades de crescimento para os/as jovens e de mudança concreta dos contextos onde estão e da sociedade como um todo.
MARI: Pedimos que deixe uma mensagem final para os jovens franciscanos e de todas as dioceses do Brasil sobre como viver na práxis a Fratelli Tutti em nosso cotidiano.
IR. VALÉRIA: O carisma franciscano é lindo e tem muito a contribuir com a Igreja e a sociedade. Potencialize dentro de vocês o que cada um tem de melhor iluminados pela experiência de Deus que fez Francisco de Assis. O fundamento de toda a sua ação, de toda a sua mensagem, que antes de tudo é sua própria vida, está na experiência do amor infinito de Deus que abraça todas as criaturas. Permitam-se fazer esta mesma experiência, neste tempo, na sua própria história, com suas capacidades e limites. Permitam que Cristo toque suas feridas para aprender dEle a tocar as feridas dos irmãos e irmãs de hoje. E sejam sempre generosos. Fomos criados para algo mais. Não se contentem com uma vida sem sentido. Podemos fazer grandes, as coisas pequenas do nosso cotidiano. Deixem-se inspirar pela amizade de Francisco com Cristo.
Abaixo, deixo o final da encíclica, suas orações para interiorização e reflexão.
Abraços fraternos, paz e bem!