COTAS PARA QUÊ?

“Não posso escrever o texto sobre esse tema!” 

Esse foi meu pensamento por algumas vezes antes de iniciar a pesquisa e redação. Sou branca, não vivi o sistema de cotas raciais, não sofri nenhum tipo de racismo, quem sou eu para escrever sobre algo que nunca senti na pele? Fui participante do sistema ProUni com bolsa integral no ensino superior em uma boa universidade. Fui parte de uma minoria que precisa de apoio para ingressar no ensino superior por deficiência na educação da rede pública, mas nunca vivi nenhum preconceito racial e isso pesou nessa redação. Até que, ao fazer um dos primeiros contatos com a entrevistada da coluna Diálogos Fraternos deste mês, escutei a seguinte frase: “Que legal esse espaço que vocês abrem no Conexão, um projeto todo articulado por pessoas brancas, para falar sobre questões raciais”. Aquilo bateu forte no peito, sabe aquela dor no estômago que revira as entranhas? Senti. A dor também precisa ser minha e para falar dela, preciso conhecer. Por isso, eu peço licença a todos os negros para falar desse assunto, e com muito respeito escrevo esse texto.

Bom, quando escrevi o texto de maio, sobre o trabalho, ficou pendente um tema que quero abrir o pensamento da coluna deste mês. Falávamos da história dos direitos do trabalhador brasileiro. No final do século XIX, a “tão sonhada” abolição da escravatura no Brasil, em 1888, deu direitos ao trabalhador negro a receber em dinheiro pelo trabalho realizado. Um mundo perfeito, não é? Mas não foi bem assim. Os negros libertos não tinham casa, comida, trabalho e então, como sobreviver? O trabalho que antes era executado por escravos de graça passou a ser feito pelos imigrantes vindos da Europa desde 1850, pois os fazendeiros e empregadores preferiam empregar os europeus. O próprio processo de vinda dos imigrantes foi racista ao beneficiar os europeus com a doação de terras e não aos negros que aqui já estavam. Bem sobre esse processo caberia uma longa reflexão ainda. 

Mas, hoje falaremos de cotas raciais. Um fenômeno relativamente recente no Brasil, que veio para tentar amenizar os danos causados aos negros durante séculos. Uma maneira de educar a sociedade para a igualdade. A convidada para esse diálogo fraterno é Jackeline Oliveira, 25 anos, Jornalista (formada pelo Centro Universitário Carioca), social media e ativista preta. Também é conteudista do Instagram (sigam @jackelinesoliveira_) e ufaaaaa quanta coisa não? E precisamos mesmo mostrar que existe profundidade nas falas, pois também aprendi que na maioria das vezes o negro, nessa sociedade, precisa se afirmar muito mais vezes que o branco (difícil né?). Pois, bem, vamos lá!

Jackeline Oliveira é carioca, tem 25 anos e é formada em jornalismo pela UniCarioca

MARI: O sistema de cotas, é amplamente conhecido pelo sistema das cotas raciais, em especial nos espaços universitários, mas não são apenas elas que defendem direitos de grupos socialmente fragilizados. Afinal, o que são as cotas?

JACK: Quando falamos sobre o sistema de cotas, vemos duas vertentes importantes. Cotas raciais e cotas sociais. A Lei de cotas foi criada em 2000, depois de uma iniciativa da UERJ e logo em seguida da Universidade de Brasília de criar o próprio sistema de cotas. Essa é a história contada por muitos jornais e sites, mas o que nós, do movimento negro conhecemos é a história de pressões sociais por reparação histórica. No ano de 2000, não era normal pessoas de baixa renda ou negros nas universidades, essa foi a luta dos movimentos sociais junto a partidos que lutavam pela equalização do ensino brasileiro. Até 2016, apenas 12% da população preta e 13% da parda tinha Ensino Superior.  Bom, se o sistema é eficaz, eu acredito que não sou capaz opinar sobre, mas acredito que era uma medida reparativa temporária para equiparação social. Quando falamos de cotas raciais estamos falando de mais de 10 milhões de brasileiros durante 354 anos. Quando aconteceu a abolição, o negro não recebeu garantias do Estado nem qualquer ação de políticas públicas em seu favor. Pelo contrário, foram expulsos das fazendas – onde tinham, em condições desumanas, um teto sob onde dormir e comida para se alimentar. Tiveram de procurar empregos e casas numa sociedade racista e que não estava interessada na criação de mecanismos de inclusão, para conceder oportunidades às pessoas negras. Das senzalas, portanto, foram para as favelas.  Através do movimento negro, o acesso ao ensino superior foi reivindicado, não só do ensino superior, mas das empresas em modo geral.

MARI: E o sistema de cotas raciais é o mesmo das cotas sociais? Podemos considerar como iguais às desigualdades do branco pobre e do preto pobre?

JACK: Não, as cotas sociais se diferem das raciais por considerarem fatores distintos que não a raça do candidato, sendo utilizadas no Brasil políticas de cotas sociais destinadas a estudantes de escola pública, estudantes de baixa renda familiar e a pessoas com deficiência, sendo que a aplicação desse tipo de cota se dá, principalmente, no Enem e no Sisu. Já as cotas raciais, foram feitas como reparação histórica social com os negros, e por vivermos em uma sociedade estruturalmente racista, ainda são necessárias. Na minha opinião, precisamos igualar a linha de partida.

“Eu também quero que haja políticas efetivas de valorização da educação desde a base, mas quando isso aconteceria?”

MARI: Concordo com você, precisamos realmente igualar essa linha de partida, e sinceramente acredito que esse deveria ser o posicionamento de todos. Imaginamos que no âmbito universitário as pessoas sejam mais conscientes quanto as necessidades sociais, de maneira geral, mas existe uma ala resistente, até mesmo nas universidades federais que são contra a qualquer tipo de cota. Importante compreender que o sistema de cotas não é apenas aplicável nas universidades, existem cotas em outros processos, como em concursos públicos. Na sua opinião, por que existe (ainda) tanta resistência contra o sistema de cotas especialmente nas universidades?

JACK: Acredito que essas críticas estejam relacionadas a aplicação das cotas raciais, na comprovação do direito a esse tipo de cota e à possibilidade da aplicação do sistema aprofundar a desigualdade racial, sendo que muitos argumentam que políticas educacionais de base seriam mais efetivas para diminuir a desigualdade social do que as políticas afirmativas para o ensino superior. Discordo, em parte. Eu também quero que haja políticas efetivas de valorização da educação desde a base, mas quando isso aconteceria? E se acontecesse, acabaria com o racismo nas empresas também? As pessoas esquecem que o sistema de cotas vai muito além das universidades. Não é que os negros não quisessem trabalhar, eles não tinham oportunidades para ingressarem. Foi preciso criar uma lei para dar oportunidade as pessoas e isso já é absurdo. Em 2019, pela primeira vez, a maioria dos universitários em faculdades públicas, eram negros, e isso se deve ao sistema de inclusão que tanto o movimento negro batalhou para ter, mas ainda, em 2020, precisamos de processos seletivos só para negros porque sabemos que a concorrência é entre o branco e o preto, não será considerado apenas a sua capacidade e sim a cor da pele que ele nasceu. Então, eu volto a dizer, o preto e o branco, ainda que morem na mesma rua e tenham a mesma condição social, tem chances muito diferentes, infelizmente. 

MARI: Existe um prazo legal para acabar o sistema? Acredita que um dia as cotas não serão mais necessárias? 

JACK: Não existe um prazo legal para as cotas acabarem, mas inicialmente, existia um plano de ação por trás da Lei de Cotas, que envolvia desenvolver a base da educação, o que vemos friamente que não aconteceu, já que quando falamos de educação, envolvemos esferas econômicas e empregatícias.  Agora incluindo os dois tipos de cotas, as pessoas que precisam escolher entre estudar e trabalhar, alimentar os filhos ou pagar um cursinho, claramente não vão ter as mesmas chances de quem estuda nas melhores escolas, tem todos os cursinhos e ainda pode escolher qual língua aprender primeiro. Claro que não estou dizendo que essa pessoa não tem o direito de ter isso, claro que tem, estou dizendo que o Estado não proporciona dignidade às classes baixas, ou será que a primeira opção de uma mãe é colocar o filho de 7 anos para tomar conta do de 2 anos?  Ou uma criança que mora no interior que precisa andar 30 minutos para pegar um ônibus, será que ela consegue se formar sem desistir ou precisar desistir no meio do caminho? Essa é a realidade de muitos e o estado precisa cuidar dessa “minoria” que sabemos que é a maioria das pessoas. 

MARI: Já vi muitos comentários no sistema de seleção para ingresso no ensino superior, como: cotas é racismo ao contrário ou que é injusto o aluno que tirou maior nota perder a vaga para alguém do sistema de cotas com menor nota. O que você pode falar sobre isso?

JACK: Atualmente as universidades públicas e concursos aplicam políticas afirmativas distintas, que variam de acordo com seus regimentos e estruturas, mas se assemelham ao destinar uma porcentagem das vagas disponíveis na instituição para candidatos que se autodeclararem negros, indígenas ou apresentarem comprovação de renda abaixo do limite, no caso das cotas sociais. O que as pessoas desconhecem, é que os concorrentes por cotas concorrem entre eles mesmo, já que existe uma porcentagem já prevista pela instituição para o ingresso de cotistas. Aliás, há um adendo: Se a pessoa autodeclarada disser que quer fazer parte da ampla concorrência, ela não concorre a porcentagem dos cotistas. Penso que falta muita informação para quem ainda fala que cota é racismo.

MARI: Eu acredito que muitas pessoas aprendem pelo testemunho e talvez você possa nos dizer algo contando para nós alguma situação de racismo que já passou. Tudo bem em contar?

JACK: Sim, é claro. Já dei algumas entrevistas e sempre falo sobre esse caso porque me marcou mais. Trabalhei na assessoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e quando fui entrevistar uma juíza com a minha equipe, como eles estavam com materiais pesados, deixei que entrassem primeiro e quando fui entrar, ela simplesmente fechou a porta. A equipe avisou e ela abriu a porta, me olhou de cima a abaixo e disse: “É você a repórter? Não imaginei.” Meu corpo não sabia reagir, porque o racismo não estava nas palavras, estava em toda a situação. Quando entrei ela pediu desculpa novamente e disse que eu era “diferente do que ela imaginou ao telefone”. Respirei fundo, pensei em toda a minha trajetória, e fiz a entrevista, mas foi difícil. Eu sempre falo que o racismo velado dói mais. Me senti totalmente impotente diante da fala e dos gestos dela, não tinha o que falar.

Jackeline, além de ativista, é também diretora de um documentário sobre o sistema carcerário no Brasil.

MARI: A maioria do nosso público são jovens que ainda estão compreendendo o sistema como um todo. Qual mensagem você pode deixar aos jovens brancos? E aos pretos?

JACK: Por favor, estudem. Brancos, para que não reproduzam o racismo, seja o velado ou não. Seja nas “brincadeiras” ou na discriminação das roupas, do modo de falar ou do lugar que a pessoa veio. Estudem para serem antirracistas e para corrigir os erros dos seus antepassados. E jovens pretos, estudem! Estudem para ensinar aos seus semelhantes que vocês não estão colhendo esmolas e sim dando uma chance real aos nossos de terem um futuro livre. Dessa vez, não da escravidão, e sim da ignorância. Estudem para dar continuidade a essa luta por igualdade, que está longe de terminar, precisamos da força de vocês.

Ao final desta coluna confesso que meus olhos estão marejados. Sinto empatia. Sinto vergonha. Sinto força e coragem para fazer diferente de meus antepassados. Gostaria que ao final desta coluna você, branco, também sentisse um pouco disso. Fico aqui imaginando o que Jesus faria nos dias de hoje, como agiria diante das situações em que o negro é excluído, ofendido ou morto. Acredito que sabemos que lado ele ficaria, não é?

Aos negros, desejo sonhos, luta e resistência. Estou ao lado de vocês.

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