A educação no Brasil tem sido motivo de grandes discussões em diversos espaços. Antes da pandemia já havia diálogos sobre desigualdade social, inclusão, meritocracia entre outros temas relacionados. Agora, com o Covid-19 essas discussões ficaram cada vez mais acaloradas, evidentes e necessárias. A pandemia que obrigou o mundo a ficar em casa, também tirou da escola inúmeros jovens que estão em época de ingresso no ensino superior. Se em tempos normais o acesso já era difícil, agora a grande maioria dos estudantes da rede pública estão sem condições de estudo, pois mal possuem acesso à internet, nem dispõem de recursos tecnológicos para estudar, menos ainda para concorrer a uma vaga no ensino superior através dos testes de seleção, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou em 28 de maio de 2020, que o Enem deste ano recebeu mais de 6 milhões de inscrições, sendo a maioria para a versão presencial da prova, a modalidade digital do Enem seria iniciada este ano. O número de inscritos na prova é o menor registrado desde 2010. De acordo com a apuração, 81,7% dos candidatos são estudantes de escolas públicas, número 11,2% maior do que o registrado em 2019. A aplicação do exame era prevista para os dias 1 e 8 de novembro, na versão impressa, e 22 e 29 de novembro, na versão digital. Depois de muitas discussões no meio político e forte pressão da oposição, em consequência da pandemia do Covid-19, as provas foram adiadas e a previsão é que a aplicação seja feita de 30 a 60 dias após o período.
Convidamos nosso amigo Frei Marx Reis para um diálogo fraterno sobre o tema Enem 2020 – as desigualdades sociais na educação em tempos de Covid-19. Nascido e criado na Baixada Fluminense, região periférica do Rio de Janeiro, Frei Marx conhece de perto as dificuldades dos jovens em situação de vulnerabilidade social, que buscam uma vida melhor através do sonho do ensino superior.
Confira a entrevista na íntegra:
MARI: A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgou em 2015 um ranking mundial de qualidade na educação. Entre os 76 países avaliados, o Brasil ocupou a 60ª posição, o que aponta um dos piores índices mundiais. Em 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao analisar as informações relacionadas a educação de nível superior, afirmou que: dos estudantes que concluíram o ensino médio na rede pública, apenas 36% ingressaram na universidade, enquanto na rede privada o número é de 79,2%. Uma pessoa com diploma no Brasil ganhava 2,5 vezes mais do que alguém com ensino médio, enquanto entre os países da OCDE a média era de 1,6 vezes mais. Sabemos que o cenário da educação brasileira sempre foi marcado por grandes diferenças sociais, mesmo antes da pandemia Covid-19. Como o senhor avalia a educação brasileira no cenário atual: salas virtuais, limitações de acesso à tecnologia, entre outros?
FREI MARX: Educação brasileira sempre esteve marcada pela desigualdade social. Ela veio para o Brasil pelo interesse do povo que veio explorar nossa terra. A educação mais abrangente ficou pelo critério dos filhos da casa grande, exclusiva. Boa parte dos que cursavam ensino superior, iam para fora do Brasil – precisariam de bastante privilégios para cursar ensino superior. Sempre foi segmentada. A herança que temos históricas da desigualdade social, marcada em todos os aspectos da sociedade, inclusive na educação. Atualmente existem rompimentos marcantes. Vejam: mesmo que algumas pessoas em situação de vulnerabilidade tenham acesso à internet, não podemos dizer que todos os paulistas tenham acesso à internet, porque existem aqueles distantes do centro. Isso é importante para entender as dificuldades para os estudantes de regiões periféricas em época de pandemia. Os estudantes de comunidades, sofrem com falta de estrutura básica em suas casas, falta internet, falta luz, precisam dividir quarto com muitas pessoas – sem silêncio, muitos não tem mesmo mesa para poder ter um ambiente de estudo adequado. Isso sem falar a falta de saneamento básico, que origina tantas doenças. Por isso, nesse caso, teremos o agravamento das pessoas nas suas relações sociais, mas teremos problemas de relações das pessoas dentro de uma sociedade que mudou seus paradigmas e que vai sentenciar os jovens no seu futuro, nas oportunidades, se eles têm ou não uma tecnologia. A tecnologia deixa de ser uma oportunidade e passa a ser sentença de um processo, que historicamente já tem problemas de exclusão.
MARI: François Dubet, sociólogo francês, estuda a desigualdade e educação, afirma que os diplomas são como sentenciadores da vida social do sujeito. “Quanto maior for a influência, a utilidade social dos diplomas, maiores serão as desigualdades escolares. Não apenas as desigualdades escolares serão maiores, mas também a reprodução social será mais intensa: será mais elevada a parte da renda dos filhos explicada pela dos pais”. O que você pode nos dizer sobre meritocracia, o valor do diploma e como ela acontece no Brasil?
FREI MARX: Vivemos em um Estado de direito e que as pessoas são responsáveis por seus progressos, boa parte da população concorda. Achamos justo que todo mundo trabalhe, e que se não trabalha, não deve receber. É justo que as pessoas estudem e os melhores tenham mais oportunidades. Exemplos: as pessoas tenham um espaço de comércio e a pessoa mais inovadora tenha mais coisas ou mais sucesso. O problema é que a meritocracia considera que todo mundo tem um processo de igualdade, o que no Brasil isso não existe. Os professores no sertão da Bahia vivem em salas precárias, alunos com fome e sede, salas multisseriadas. Periferias em que crianças em favelas com idade de 8 ou 9 anos que tem medo de ir para casa porque começou uma troca de tiros, desnutrição. Lembra da história do jovem Marcos Vinicius que morreu no Rio de Janeiro? O processo de desigualdade e condições que essas pessoas vivem é algo absurdo. A meritocracia neste processo de que “todo mundo que estudar vai se dar bem” ou “as pessoas que batalharem vão ter dinheiro”. Isso é mentira, pois se fossem, um número muito maior teria essa ascensão. Esse grupo minoritário teria muito mais acessos, pois a luta é grande. Tenho uma pessoa próxima de mim, morava na baixa Fluminense e trabalhava em Niterói, tem dois filhos, um especial e fazia faculdade. Qual é a condição dessa pessoa para terminar essa faculdade? Aí vamos julgá-la: a se não tivesse engravidado, ou seja, vamos apontar para uma responsabilidade da pessoa para desqualificá-la. E quando fazemos isso, a gente afirma que não existe meritocracia, pois não refletimos sobre as condições que as pessoas tiveram na sua história. Mas como que vou legitimar que um grupo tem menos direito que o outro. Ninguém pensa que um grupo de meninas da mesma idade que nunca precisou trabalhar, mesmo que tenham filhos, pois os pais sempre pagaram a escola.
MARI: Há muito tempo a meritocracia está enraizada na sociedade, sem nenhum tipo de equidade para que todos tenham acessos de forma igualitária. Como a pandemia pode ter prejudicado ainda mais os jovens de baixa renda?
FREI MARX: A perseguição das minorias é evidente, a ideia de meritocracia não é justa em nosso país. Nesse processo de Enem em meio a pandemia vai deixar mais clara essa desigualdade. Os que terão acesso serão poucos e muito privilegiados, pois vão ter acesso ao ensino superior, pagos pelo governo, quando teriam oportunidade de pagar esse ensino. Eles não deveriam tirar esse direito de quem é pobre. Quais são os grandes problemas que a pandemia ficou alarmante? Fome, desemprego, violência doméstica e de abusos a crianças e adolescentes. Traz um cenário de um grupo de pessoas que não apenas são afetados dentro deste estado de meritocracia, como passam a ser caçados, já que a sociedade forçou o espaço que lhe tirou a dignidade muitas vezes. Essa pessoa não apenas tem dificuldades psíquicas e forças sociais por poder viver esse quadro de tamanha violência e tamanha precariedade, essa pessoa soma a esse processo a responsabilidade de aprender, porque o Estado não pode mais fazer isso. Isso se acontecer da pessoa ter internet em casa. As pessoas foram desmontadas nesse processo social todo. Desmontou o processo de fortificação do aprender intelectual das crianças, como também estão em outro par de concorrência com outras crianças. Os professores de colégio particular têm inúmeras ferramentas que os alunos são brigados a terem no processo de aprendizagem, os de escola pública, não. Nem professores tem as ferramentas, nem foram treinados para isso, nem tem notebook ou outro material em casa para ter esse tipo de acesso. É um problema seríssimo. Meu medo é desse tecido social que foi desmontado.
MARI: Falando das políticas para educação do atual Governo do Brasil, como avalia as discussões sobre o Enem neste ano de 2020?
FREI MARX: As políticas públicas são bastante contraditórias no seu maior. Nossas políticas públicas são pautadas em questões muito pueris. Primeiro se criou uma discussão ideológica, e precisamos entender essa expressão: pressupomos que é um termo para definir uma forma de pensar do pensamento de esquerda, quando é um conjunto de reflexões de uma pessoa sobre as projeções para o mundo, e não existe lado direita ou esquerda. Políticas públicas são cheias de ideologias, para extinguir tudo que é diferente, colocando privação para as reflexões, e de tolhimento das capacidades de expressão e lutas por seus direitos. O grande esforço que existe para diminuir na ciência que pressupõe o pensamento livre para dar lugar ao pensamento cívico e coisas do gênero. Vemos aí o estudo da volta no investimento na educação militar que visa doutrinar as pessoas. Tudo isso deixa as pessoas muito pacificadas pela luta dos seus direitos, sendo assim a educação não consegue chegar a outro escopo que é a qualidade e a sua expressão majoritária. Não conseguimos levar a educação para muitos lugares, muitos em nosso país não tem acesso à educação, por vezes mal tem professores para cumprir todas as disciplinas que deveriam ter. Nossos professores vivem muito fadigados com o processo de ensino, assim como alunos vivem uma série de questões para além da sala que também comprometem a aprendizagem. É necessário fazer uma avaliação do ensino médio, que é o caso do Enem, quando nem ocorreu essa educação descente para toda a população que tem a educação pública, a disparidade é enorme, é sentenciar essas pessoas que foram prejudicadas na sua formação básica. Penso que isso tudo vai dentro de uma grande construção ideológica, que essas populações mais pobres fiquem longe de uma aprendizagem reflexivas dentro da academia, e dando espaço para as pessoas que tenham mais fortuna na vida inclusive para poder assumir a construção de pensamentos nacional. Acredito que mesmo tendo uma desigualdade gritante em nosso país, ainda temos uma população jovem que sonha com algo novo, espero que eles discordem com esse projeto maléfico sobre essa população mais pobre.
MARI: Qual mensagem o senhor pode deixar aos jovens que passam por essas dificuldades na educação neste ano tão turbulento?
FREI MARX: Eu deixo a juventude um quase que um levante, porque a gente que nasce pobre numa periferia, a gente não tem tempo para poder esmorecer. A gente não tem essa oportunidade de ter que esperar muita coisa para ter condições de algo diferente. Boa parte de nossa juventude precisa trabalhar para sustentar a família enquanto estuda. Costumo falar para essa juventude que tem o mesmo formato de vida que eu tinha quando era mais jovem, depois que termino um trabalho que faço com eles, quando é minimamente satisfatório e vão me agradecer, costumo dizer que muito obrigada, quero diploma! Digo isso porque prefiro e sonho que sonhe e tenha a ousadia de superar todos os processos de contradições, enquanto uma juventude periférica com inúmeros problemas supere todas as estruturas que temos de preconceito e de perseguição para essa camada mais pobre, a ponto de ganhar mais do que um diploma ganhar uma educação de qualidade. Façam isso por mim, por vocês e por seus próximos. Quando vocês forem capazes de entender o que significa enquanto sujeito de periferia, um jovem que vive num processo de contradição, como vivemos agora, e olhar para trás e ver que pode ajudar tantos outros nesse mesmo caminho, acredito que você é capaz disso. Não desista, se esforce, não porque você precisa provar algo para alguém, mas, porque em nossas condições ou a gente luta, ou a gente não chega ao amanhã. No Brasil o processo de educação é um processo de resistência, que quem não resiste não tem educação em nosso país, muito menos de qualidade. Espero ainda ler livros juntos, discutir muito sobre muitas coisas, mas sobretudo ser feliz num mundo forjado por pessoas que estudaram e sonharam com universo novo sem muitas contradições.
Abraços da Mari e do Frei Marx. Paz e bem.
Resistência!