A coluna do “Em Fraternidade”, deste mês de maio, tem a imensa alegria de receber o jovem franciscano Maurício Bernz, que é natural de Gaspar (SC), mas no presente reside em Maringá (PR). Integra o Conselho de Juventudes da Província da Imaculada Conceição do Brasil, e atualmente é Gestor de Pastoral no Grupo Marista.
Maurício gastou suas férias fazendo a solidariedade acontecer junto a “Tenda Franciscana”, localizada no centro de São Paulo (SP). Segundo ele, estávamos na cidade com maior número de mortes frente ao COVID-19, mas com uma necessidade bem mais simples e sem solução – milhares de moradores de rua sem alimento ou assistência. “Pude ver Cristo no rosto sofrido daqueles moradores de rua e fiz a experiência franciscana da Perfeita Alegria”, revela o jovem.
Leia o texto na íntegra:
“Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção”
Antes de toda e qualquer palavra, aproveito para me apresentar, principalmente por ser novo neste espaço. Sou Maurício Bernz, jovem franciscano, grande admirador dos escritos, ensinamentos e espiritualidade de São Francisco. Sou participante discreto das Caminhadas e Missões Franciscanas (apesar das profundas emoções) e colaborador da Província nos processos pastorais e evangelizadores frente às juventudes. Minha maior alegria é poder partilhar todo esse entusiasmo e espiritualidade junto à minha família (esposa e filho).
Adianto que esse texto não tem um cunho filosófico ou teológico, nem busca responder as grandes inquietações juvenis. Venho apenas partilhar, de forma breve, um pouco da minha vida e da minha experiência junto ao Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS). Agradeço imensamente ao Frei Augusto pelo saudoso convite, sobretudo diante do tempo oportuno que vivemos, a Semana Laudato Si’.
“Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas”
Neste mês de maio a Encíclica “Laudato Sí”, sobre o Cuidado com a Casa Comum, escrita pelo Papa Francisco, completa cinco anos. No Brasil e no mundo, diversas iniciativas estão sendo preparadas para o momento de celebração do documento que nos chama a refletir sobre o futuro do planeta.
Que tempo maravilhoso vivemos hoje, frades e jovens franciscanos. Há sete anos ganhamos um Papa que nos deu a honra de lembrar o nome de Francisco. Junto com seu nome, fez o mundo conhecer o jeito alegre, disposto e humilde da vida franciscana. Logo mais, recordou o mundo da responsabilidade com a Casa Comum, intitulando o documento com as belas palavras cantadas por São Francisco: Louvado sejas meu Senhor.
Iniciou a Encíclica, desta forma: “Laudato si’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa Casa Comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (FRANCISCO, 2015, 1).
“Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a mãe Terra, que nos sustenta e governa e produz frutos diversos e coloridas flores e ervas”
Quando ouvimos notícias sobre os temas de Ecologia, natureza, cuidado com a Casa Comum, torna-se impossível, para nós franciscanos, não recordarmos nosso querido Santo. Várias são as histórias sobre o cuidado de Francisco com a natureza e as diversas criaturas. Não à toa, tornou-se o patrono dos animais e o pai da ecologia.
Quando vamos mais fundo, trazendo as próprias diretrizes franciscanas, recordamos três pilares: Justiça, Paz e Integridade da Criação, novo termo para Ecologia. Não existe a possiblidade de nos dizermos franciscanos se não respeitarmos esses três aspectos. Contudo, por vezes levamos o termo Integridade da Criação, isto é, a harmonia e o respeito entre as criaturas (homem, animais, plantas, recursos naturais), um tanto infantilizado. Muitas vezes levantamos tantas bandeiras, que acabamos esquecendo o centro da criação, a vida humana – a coroação da criação.
Longe da nossa espiritualidade exaltar a pessoa humana por orgulho ou por mérito, pelo contrário, recordamos as próprias palavras de Francisco, que se dizia “ínfimo servo” dos demais. Trazemos o homem ao centro da criação, como aquele que foi delegado e incumbido, pelo próprio Deus, para cuidar e ser guardião desse tão belo jardim criado por Ele. E como sabemos, para São Francisco quanto maior a responsabilidade, muito maior a humildade.
“Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, pelo qual iluminas a noite. E ele é belo e jucundo, vigoroso e forte”
Para enriquecer nossa partilha, trago uma breve história vivenciada por São Francisco, logo nos primórdios da Ordem, no início da chegada dos primeiros irmãozinhos. No livro de Tomás de Celano, frade escritor da vida de Francisco, no capítulo 15, consta o relato:
Certa noite, um dos frades começou a gritar durante o descanso dos outros: “Estou morrendo, Irmãos, estou morrendo de fome!” O valoroso pastor levantou-se imediatamente a acudir sua ovelhinha doente com o devido remédio. Mandou preparar a mesa, embora cheia de iguarias rudes, onde havia água no lugar de vinho, como era frequente. Ele mesmo começou a comer e, por caridade, para que o frade não ficasse envergonhado, convidou também os outros Irmãos. (…) Depois admoestou atentamente que cada um deve considerar suas próprias forças quando pensa em prestar favor a Deus. Afirmou que tanto era pecado deixar de dar o que era devido ao corpo quanto dar-lhe o supérfluo por gula. E acrescentou: “Deveis saber, caríssimos, que fiz o que fiz por cortesia e não por gosto, porque assim mandava a caridade fraterna. Tomem o exemplo da caridade, não o da comida, porque esta serve à gula, aquela ao espírito” (II Cel. 15).
Sem dúvida, grande foi o ensinamento que Francisco admoestou aos frades da época e a nós, jovens franciscanos. No mesmo instante em que cobrava austeridade e penitência dos seus irmãozinhos, tinha a sensibilidade e delicadeza de ensinar o dom e a alegria da partilha. Que fogo ardente teve Francisco em seu coração, capaz de iluminar a mais escura, fria e dolorosa noite.
“Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações”
Todos nós conhecemos o Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS), gigante frente de assistência, missão e evangelização da Província? Bom, para que não haja dúvidas, vamos lá!
O SEFRAS tem como missão promover ações e atitudes de solidariedade com os empobrecidos e excluídos, contribuindo para a transformação social, à luz do modo franciscano de viver e anunciar o Evangelho. São oito projetos realizados em São Paulo e três organizados no Rio de Janeiro, atendendo os diversos públicos e necessidades: moradores em situação de rua, crianças, idosos, trabalhos com os migrantes, portadores de HIV, reciclagem entre outros. Conheça mais: http://www.sefras.org.br/novo/.
Nesse tempo conturbado de Pandemia (COVID-19) os frades de São Paulo, vendo centenas de moradores em situação de rua passando ainda mais fome, tendo em vista que os restaurantes foram fechados, projetos e doadores não saíam de casa, ruas e mãos vazias diante das esmolas, ergueram a “Tenda Franciscana”, no Largo de São Francisco, centro de São Paulo e iniciaram, junto ao SEFRAS, o atendimento aos moradores em situação de rua com a entrega de “marmitas” e/ou quentinhas.
Certamente, recordamos a história de São Francisco relatada anteriormente. Diante de um tempo escuro, frio e sombrio de pandemia, surgiu na calada noite um grito de socorro. E no coração do SEFRAS e dos frades, acordou o fogo ardente de Francisco, capaz de armar a mais bonita mesa e acudir suas ovelhinhas.
“Bem-aventurados os que sustentam a paz, que por ti, Altíssimo, serão coroados”
Ao longo de 2019, o Conselho de Juventude da Província, na presença do Serviço de Animação Vocacional, lembro que é neste trabalho que se encontram o Frei Diego e Frei Alisson, se desenhou e estruturou um Itinerário de Solidariedade para os jovens franciscanos da Província. O objetivo da ação foi organizar todos os projetos, Missões, Caminhadas, Retiros, Acampamentos, dentro de uma caminhada espiritual e solidária, visando o aprofundamento de cada jovem.
Neste Itinerário, o Conselho de Juventude pensou um projeto que pudesse atender as expectativas daqueles jovens que queriam “algo mais”, ou seja, um tempo maior de ações para com a solidariedade, com mais intensidade e aprofundamento. Com este sentimento, saiu do papel a experiência junto ao SEFRAS de São Paulo. Os jovens poderiam partilhar a vida com os moradores em situação de rua, com os recicladores de lixo, com os idosos abandonados e até com os migrantes que ainda se encontram excluídos em nosso país.
A ideia inicial previa tal experiência sempre no período de férias de janeiro e julho, contemplando os vários jovens que trabalham e estudam. Contudo, com a emergência da pandemia do novo Coronavírus e do trabalho na “Tenda Franciscana”, os frades lançaram as redes e o convite para os jovens dispostos. Foi neste momento que minha jornada começou.
“Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal,
da qual homem algum pode escapar”
A graça começou quando o convite coincidiu com as minhas férias inesperadas (COVID-19). Fui convidado, pela minha empresa, a retirar 15 dias de férias, conforme prevê a lei de auxílio ao tempo de pandemia. Não tive dúvidas diante do convite, feito pelo SEFRAS, e do ardor que carregava no coração ao ver a “Tenda Franciscana” no noticiário do Jornal Nacional, da Tv Globo.
Iniciei naquele instante o segundo desafio, o de conciliar a vontade de ajudar, o afastamento da minha família, a possibilidade de ser atingido pelo vírus, mais do que isso, trazer o vírus para dentro de casa, e o de passar, pela primeira vez, a Páscoa longe da minha família. Todas essas dúvidas pesaram muito, sobretudo quando a resposta não poderia ser dada sozinho. Agradeço imensamente minha esposa e filho por aceitarem essa missão junto comigo, por rezarem todos os dias pela minha saúde e por partilharem todas as aflições lá encontradas.
Foram 15 dias de grande aprofundamento humano e espiritual. Por mais que eu escreva, relatando detalhes e fatos, jamais conseguirei expressar o real sentimento daquela experiência. Carreguei fardos de doações, rodei a cidade de São Paulo buscando e levando marmitas, carreguei caminhões de donativos até as favelas, terminei o dia às 22h entregando marmita no centro da Cracolândia após um dia intenso na Tenda Franciscana. Medo? Paixão, senti um amor e uma responsabilidade tão grande por todos aqueles que aguardavam um prato de comida.
“Felizes os que ela achar conforme a tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal”
Pude ver Cristo no rosto sofrido daqueles moradores de rua, fiz a experiência franciscana da Perfeita Alegria. Ao longo da vida, já vivenciei tantas semanas santas maravilhosas, impecáveis liturgicamente, com profundos momentos de riqueza espiritual, mas foi lá, no centro de São Paulo que experimentei a verdadeira Páscoa. Conheci pessoas incríveis, gravei rostos e nomes, partilhei minha vida e ouvi histórias de tantas cidades e estados de abandono, de vícios, de fraquezas, um tanto dolorosas e outras cruéis. Mas consegui, acima de tudo, entender o verdadeiro sentido do termo Integridade da Criação. Vi frades e jovens franciscanos cuidando daquilo que mais defendia São Francisco – a vida, a vida acima de tudo.
Estávamos na cidade com maior número de mortes frente ao COVID-19, mas com uma necessidade bem mais simples e sem solução – milhares de moradores de rua sem alimento ou assistência. Em resumo, a Tenda Franciscana entregava, e continua entregando, mais de 3,000 marmitas por dia. Como ouvimos de um morador de rua: “A fome mata bem mais gente que o vírus”. Francisco de Assis jamais louvaria a morte nestas condições, certamente não seria da santíssima vontade do Pai.
Obrigado SEFRAS! Obrigado aos Freis franciscanos por me permitirem tamanha experiência. Aliás, vale ressaltar, ficamos hospedados no Convento Franciscano Santo Antônio do Pari, no Brás. Que sintonia e dedicação daquela fraternidade e daqueles frades. Acordávamos rezando e planejando a missão diária e terminávamos o dia partilhando as alegrias e tristezas ao redor da mesa, sempre tarde da noite.
“Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças, e servi-o com grande humildade…”
Lembro-me daquela passagem: “Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta. Pois todo o que pede, recebe; o que busca, encontra; e àquele que bate, a porta será aberta”. (Mateus 7, 7-8). Seja esta passagem nossa luz e nossa missão. Talvez não precisemos chegar ao SEFRAS para realizar tal experiência, já vi e ouvi diversas atividades de jovens na Província que continuam preparando a mesa para aqueles irmãozinhos que têm fome.
Desejo uma santa e abençoada Semana Laudato Si’ para todos os jovens e frades Franciscanos. Que possamos, cada vez mais, interiorizar o verdadeiro sentido deste tão belo cântico deixado por São Francisco.
Um fraterno abraço e Paz e Bem!
Maurício Eduardo Bernz
Maurício Eduardo Bernz é natural de Gaspar (SC). Franciscano desde o ano de 2005, viveu na Vida Religiosa até o ano de 2012. Possui graduação em Filosofia, mestrado na área de educação e especializações em Filosofia da Educação. Atualmente compõe o Conselho de Juventudes da Província da Imaculada e trabalha como Gestor de Pastoral no Grupo Marista. Maurício tem 29 anos e reside em Maringá (PR).
Querido Maurício, maravilhoso esse trabalho do Sefras, com a participação de todos vocês. Eu participei e participarei dando uma contribuição monetária mínima. O que mais me mobiliza, além dos doentes, são os pobres, especialmente os em situação de rua. Já doei pessoalmente, quentinhas no centro da cidade do RJ, com iniciativa de uma Paróquia em um Primeiro Domingo do Advento. Lindo o seu depoimento e importante o seu trabalho e o de todos. Mas, sem querer ser indelicada, essa não foi uma experiência da “Perfeita Alegria”.
Fraternos abraços.
Denise Reis Marques Pires