Você jovem pelo menos uma vez já deve ter sentido alguma indignação por saber de alguém que foi prejudicado no trabalho. Um pai que foi demitido sem justa causa, uma mãe que ganha um salário vergonhoso, um imigrante que trabalha sem registro em carteira assinada porque o patrão não quer pagar seus direitos. Quem sabe uma tia ou familiar que ao fazer uma entrevista de emprego foi questionada se estava grávida. Ou, de repente, você mesmo não consegue um primeiro emprego porque todos os trabalhos exigem experiência. Ufa! É tanta coisa que acontece nesse universo das relações de trabalho. São inúmeras as possibilidades de um trabalhador ser prejudicado, e é para isso que existem os direitos trabalhistas. Você sabe o que são?
Os direitos trabalhistas foram garantias conquistadas pela classe trabalhadora ao longo de mais de um século de história e há muito ainda o que se fazer. Mas, há pouco mais de um século a escravidão estava aqui no Brasil, como algo normal, e mesmo depois de libertos os negros ainda precisavam disputar espaço com imigrantes europeus que chegavam ao Brasil. Crianças e jovens eram forçados ao trabalho a troco de esmola. Patrões legislavam diretamente sobre seus empregados, quase sem nenhum direito.
Para ilustrar de uma maneira rápida e direta sobre como foram as histórias das conquistas do trabalhador brasileiro, apresentamos um resumex, tipo de aula de história:
Bem, agora que você, que talvez não soubesse, conhece um pouquinho mais da história das conquistas dos direitos trabalhistas. Nós aqui do Conexão pensamos em um diálogo entre amigos, falando em defesa e refletindo sobre a dura vida do trabalhador. Então chamei meu amigo Frei Gabriel Dellandrea para conversar.
Mari: Amigo, vamos falar de direitos trabalhistas? Ao avaliar o sistema de trabalho das pessoas comuns da sociedade atual, lembramos de Sísifo da mitologia grega, que foi condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido. A impressão que tenho é que o homem está condenado a trabalhar sistematicamente em situações por vezes deploráveis para ganhar o pão de cada dia, sem poder aproveitar a plenitude da vida. Pensar na luta do trabalhador brasileiro por mais de um século para ter mínimas garantias dentro de um sistema que oprime o mais fraco em detrimento do enriquecimento do mais rico e que aquele oprimido quase não desfruta os bens que produz. Precisou muita discussão e lutas (literalmente) para que hoje o trabalhador possa ter o direito de, ao menos, descansar uma vez por semana e ganhar por esse dia, ou o direito de tirar 30 dias de férias no ano. Qual sua opinião sobre essa relação das conquistas do trabalhador?
Frei Gabriel: Eu perguntaria se tivemos, de fato, uma trajetória de conquistas. O que alcançamos foram muitas vezes direitos que de certo modo nos garantem uma tranquilidade de vida, mas que nos enclausuram num regime de trabalho que ainda tem “tons” de escravidão. Hoje, o trabalhador brasileiro, para garantir uma aposentadoria precisa dedicar a maior parte do tempo de sua vida para ir ao trabalho, voltar do mesmo e trabalhar. Muitos, que trabalham no turno que compreende das 8h até as 17h, passam a maior parte do dia em seus ambientes de trabalho. Parece que há um “contentamento” com os feriados e finais de semana, que também se dividem em outros afazeres ou “bicos” para quem é mais pobre. O ganhar dinheiro parece ter implodido a nossa capacidade de acreditar que há outras coisas que excedem o mundo do trabalhar e produzir. Somos feitos de sonhos, vontades, talentos e perspectivas que podem ir muito mais além de uma jornada de trabalho repetitiva, cansativa e que nos dá uma esmola daquilo que produzimos.
Mari: A luta por direitos e garantias ao trabalhador começou após a abolição da escravatura, em 1888 e foi tardio comparado a outros países latino-americanos e aos Estados Unidos (1810 – 1865). Após a abolição da escravatura no Brasil o advento da chegada dos imigrantes europeus gerou a concorrência do trabalho e as péssimas condições do trabalho. Com isso, surgiram os primeiros sindicatos e as primeiras lutas por direitos do trabalhador. Observando esses períodos, podemos constatar que ainda somos muito imaturos nas conquistas, pois foram 388 anos de escravidão no Brasil contra 132 de “liberdade, igualdade de direitos e dignidade” do trabalhador. Com isso, para você, o que significa a luta do passado?
Frei Gabriel: Significa que a luta não pode parar. Com certeza temos muitos elementos que são extremamente necessários recordar: já achamos normal o trabalho escravo, já vimos com tranquilidade as longas jornadas de trabalho (12, 14, 16 horas), já fomos uma sociedade que viu suas crianças irem para as indústrias… e fazer uma retrospectiva histórica é algo divino. Na religião cristã somos movidos de “memória”. A Eucaristia é uma memória da Ceia de Jesus. Na vida também precisamos fazer essa memória para não repetirmos erros do passado. Não podemos entender os direitos trabalhistas que pouco temos como bondade dos políticos. Eles são fruto da luta, do martírio e do suor de muitos trabalhadores e trabalhadoras, que no seu sonho quiseram vislumbrar um mundo melhor. Mas não se pode acreditar que essa luta pode ser vendida pelos interesses econômicos dos empregadores milionários que podem perder lucro com os direitos do trabalhador. Eles, os empregadores, por vezes, possuem o seu mérito, mas não podemos esquecer que o dinheiro não compra tempo e saúde. Quanto mais nos privarmos dos direitos e darmos eles na desculpa de beneficiarmos o empregador, mais nos prenderemos num círculo vicioso que só com muito custo poderemos sair novamente.
Mari: Em 2017 o governo Temer ameaçou a classe trabalhadora com reformas diversas. A terceirização irrestrita e o trabalho intermitente são aprovadas pela lei № 13.467 de 2017, entre outras significativas mudanças na legislação trabalhista, tirando vários direitos que os trabalhadores haviam conquistado no decorrer dos anos de luta. Segundo o governo, o objetivo da reforma foi combater o desemprego e a crise econômica no país, que teve início em 2014. Mas, o massacre contra a classe trabalhadora não acabava por ali. Em janeiro de 2019 quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil, extinguiu vários ministérios, dentre eles o Ministério do Trabalho (fundado em 1930). Com outros ministérios, fundiu parte dele com o Super Ministério da Economia, dirigido por Paulo Guedes, colocando lobos e ovelhas no mesmo espaço. Tantas mudanças geraram um cenário de incertezas entre os trabalhadores que representam a maior parcela da população. Como avaliar essa situação?
Frei Gabriel: Aqui reside uma questão interessante. Os empregadores, pela posição que estão, exercem um poder sobre um grupo de pessoas. Quando o líder consegue atrair a capacidade, os talentos e os dons daqueles a quem ele orienta, não pelo medo, mas pela confiança, o outro responderá cada vez melhor e mais intensamente dentro da dinâmica do trabalho. A última reforma trabalhista é o grito de uma classe de líderes que ainda não entendeu isso. Não é cortando direitos que o colaborador oferecerá um melhor serviço, mas é justamente quando este se sente motivado que ele irá exercer cada vez melhor a sua função. O medo paralisa, a confiança motiva. A extinção do Ministério do Trabalho já acende uma luz diante dos problemas relacionados à classe trabalhista no Brasil.
Mariana: O atual (des)governo tem colocado a população mais vulnerável em situação cada vez mais delicada. O número de desempregados em janeiro de 2020 era de 11,9% e de trabalhadores informais (sem registro de carteira assinada) era de 41% (Fonte Agência Brasil). Com o advento da pandemia do coronavírus e a demissão irrestrita de funcionários com a desculpa de manter a saúde financeira da economia, apoiada pelo presidente, mais de 1,2 milhões de trabalhadores ficaram desempregados (Fonte IBGE). Vemos muitos idolatras do presidente defendendo a reabertura de comércios, a extinção do distanciamento social em prol da economia. O próprio presidente tem dado o mau exemplo em descumprir o distanciamento com o intuito de “estimular” a economia e diminuir o desemprego (que já estava altíssimo antes da pandemia). O que você pode dizer a respeito disso?
Frei Gabriel: Nesta pandemia também muito se falou de “salvar a economia”. A economia de quem? De fato, precisamos salvar a economia de uma visão ridícula que compreende essa palavra no gesto de acumular dinheiro nas mãos de uns que liberam trocados a outros diante da sua força de trabalho. Salvar a Economia significa trazer o que ela é de verdade: do grego oikonomia, que quer dizer administração, governo de uma casa. Parece que essa palavra se distanciou de sua essência e ganhou como sinônimo “acúmulo de dinheiro nos cofres”, “preço do dólar”, “lucro pelo lucro”. O bom administrador garante que tudo funcione, e não é bem o que vem acontecendo no nosso país quando se tomam medidas que dificultam o acesso à vida digna dos mais pobres, especialmente. Um exemplo disso é o problema do discurso meritocrático, onde cada um, com suas forças, precisa chegar no mesmo patamar ou atingir uma estabilidade de vida, com um padrão questionável. Mas se levarmos como metáfora a corrida, onde há uma linha de partida, há pessoas que por sua cor, pelo lugar onde mora, pela estrutura familiar que tem, já saem quilômetros de distância para trás que outros. Diante disso, se não houver um processo de conscientização de direitos, de busca por uma economia solidária, eu não vejo bons horizontes. Mas nosso povo já mostrou que é lutador, aprende com os acertos e erros e pode chegar a uma sociedade cada vez melhor! “Salvemos a economia” da mão dos egoístas e a coloquemos no seu devido lugar: a economia é para nos dar dignidade, e não a arrancar! Já vimos pelo coronavírus que o que nos salva é um projeto em comum de solidariedade, partilha e pertença social.
Mariana: Enquanto Cristãos somos fortemente movidos pelo espírito da caridade. Jesus também viveu num contexto histórico de desrespeito aos trabalhadores. Nazaré era muito pequena havia poucas oportunidades de trabalho assim como em toda região. Exceto na capital Jerusalém para onde vários homens migravam a procura do ganha-pão. A maior parte das famílias da região sobreviviam do cultivo da terra, sendo que boa parte do seu ganho era para o pagamento de altas taxa de impostos que o Imperador impunha. Enriqueciam os grandes latifundiários enquanto as pequenas famílias camponesas sem muitas condições acabavam perdendo suas terras, as famílias se desintegravam e tornando-se diaristas – aqueles que ficavam a margem esperando todos os dias algum trabalho que lhe desse o sustento do dia, profissão pouco desejosa para época – mendigos, prostitutas e fugindo de seus credores. Dura realidade da qual Jesus experimentou e da qual muito nos é semelhante até hoje. Jesus de Nazaré os defendia com muito amor, e assim faz até hoje. Papa Francisco sendo nosso pastor, falou em sua missa do dia 1 de maio de 2020 sobre a falta de dignidade aos trabalhadores e assim como Jesus os defendeu “Também hoje há muitos escravos, escravos do trabalho para sobreviver: trabalhadores forçados, mal pagos, com a dignidade espezinhada. Tira-se a dignidade das pessoas. Também aqui onde estamos acontece com os trabalhadores diaristas com uma retribuição mínima por muitas horas trabalhadas, com a doméstica a quem não se paga o justo e não tem as seguranças sociais e a aposentadoria.” Enquanto frade e jovem franciscano, ao ver o povo de Deus passando por situações que ferem direitos tão básicos como do trabalho, qual é seu desejo ao povo de Deus?
Frei Gabriel: Sinto e sei que sou fortemente garantido pela meritocracia. Graças a Deus recebi uma base que me possibilitou estudo, dignidade, conforto e agora estou numa instituição que me garante os mesmos meios de viver. Posso parecer ridículo falando de trabalho, pois nunca tive nem sequer uma carteira de trabalho. Não trabalhei numa firma, algo assim. Porém, nunca deixei de cultivar ações que me aproximassem de empreender a minha força e minhas capacidades no trabalho pelo Reino de Deus, seja pelo estudo, pela escuta, pela preparação de atividades e formações, visita aos doentes, missões… Além disso, sempre procurei estar perto do povo mais sofrido, escutar suas dores. Sei que não senti na pele muito do que eles sentiram, mas ouvir seu apelo não me impede de ter empatia e lutar por seus direitos. Não preciso ser negro para combater o racismo. Não preciso ser homoafetivo para combater a homofobia… a caridade nos une em irmãos e irmãs que querem o bem uns dos outros. Nas minhas andanças encontrei pessoas que, com a mesma idade que eu, não tiveram as mesmas oportunidades, e sinto que elas até atingiram seus sonhos, mas com um esforço que sei que não precisaria fazer. O fato é que desejo aos trabalhadores do Brasil uma consciência de grupo a que estão para se fortalecerem mais diante dos direitos que forem ameaçados. E peço que observem a atual política, os discursos, as posturas… os líderes políticos estão onde estão para serem cobrados por nós, e não mitificados. O sonho de um país digno e justo está no sentimento de fraternidade: afinal, somos todos irmãos! A resposta está no coletivo e não no individualismo, que já vimos que destrói, mata e corrompe.
Ao final desta conversa e retomada histórica das lutas do trabalhador, estejamos de olhos abertos e ouvidos atentos ao que acontece no cenário político. Ao sermos cristãos colocamo-nos ao lado dos preferidos de Jesus, por isso precisamos questionar, lutar, discutir e não apenas aceitar. Ainda temos muita lenha ainda a queimar.
Também gostaria de nos colocar em posição de oração. Neste mês mariano, sendo o primeiro dia dedicado ao seu esposo José, o artesão trabalhador, queremos voltar nosso olhar a Maria e os trabalhadores. Aos que sofrem com o desemprego, com a falta de dignidade no labor, com o trabalho escravo ou insalubre, aos que lutam para colocar o pão na mesa da sua família, aos que lutam para pagar um teto para abrigar seus filhos. Maria cuida de todos, em especial neste momento de pandemia que olha com carinho aos profissionais da saúde que entregam sua vida para cuidar dos outros – sacrifício. Mulher fiel, forte, silenciosa e presente, nossa Boa Mãe Maria cuida desse mundo que agora geme em dores de parto.