Amar ou ser Armado? Eis a questão.

Muito tem sido discutida nas últimas semanas, a questão da flexibilização do comércio de armas de fogo no Brasil, a diferença entre posse e porte, o Estatuto do Desarmamento, e até a admissão por parte da Doutrina da Igreja do uso de armas de fogo para a legítima defesa. Longe de querer causar alguma polêmica sobre esse assunto, venho propor uma reflexão saudável sobre o tema, já que esse assunto é importante, urgente e do interesse de todos nós.

Então, meus amigos, quero começar essa reflexão considerando que os Cristãos Católicos buscam ser fiéis à Doutrina e ao Magistério da Igreja. Digo isso porque existe um artigo do Catecismo da Igreja Católica que tem sido muito mencionado nas discussões acerca desse tema. O parágrafo 2265, que está no capítulo “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, no trecho que trata da legítima defesa. 

O capítulo todo é muito interessante, e aborda muitos temas importantes na relação com o outro, um deles é a questão da legítima defesa. Claro que é recomendada a leitura de todo o capítulo para um entendimento mais profundo do tema, não apenas do parágrafo em questão, mas em todo caso trago abaixo a transcrição do parágrafo 2265.


2265. A legítima defesa pode ser não somente um direito, mas até um grave dever para aquele que é responsável pela vida de outrem. Defender o bem comum implica colocar o agressor injusto na impossibilidade de fazer mal. É por esta razão que os detentores legítimos da autoridade têm o direito de recorrer mesmo às armas para repelir os agressores da comunidade civil confiada à sua responsabilidade.

É perigoso tomar o conteúdo da Doutrina apenas por um parágrafo, sem levar em conta o que está escrito em todo o capítulo. Por vezes temos a tentação de, diante de uma dúvida sobre o conteúdo, puxarmos a conclusão convenientemente a favor de nossos anseios, como forma de obter uma aprovação divina da nossa maneira de pensar. Mas fazendo uma breve análise do parágrafo 2265 podemos perceber que ele não deixa claro que as armas podem ser utilizadas para a legítima defesa, essa afirmação é uma interpretação incorreta do que a Doutrina afirma em diversos momentos.

Retomando o parágrafo 2265, temos a legítima defesa como um direito e um dever, o que já mencionado nos parágrafos anteriores. A vida é um dom precioso, e é nosso dever zelar por ela, repelindo aos agressores caso seja necessário. Lembrando sempre que a reação deve ter proporções, no sentido de evitar as agressões, e não de obter vingança. Mas o referido parágrafo apresenta uma situação especial, que é o dever de Estado de zelar pelo “bem comum”. Aqueles que tem o dever de zelar pela vida dos cidadãos, por juramento, são os agentes de segurança pública. Estes são considerados os legítimos detentores da autoridade, que têm o direito de recorrer às armas para repelir os agressores da comunidade civil. 

Parece muito claro que, aqueles que tem o dever de zelar pela segurança da população tenham o direito de recorrer às armas para garantir a legítima defesa de outra pessoa, confiada a sua responsabilidade. São estes agentes os policiais, os membros das forças armadas, os agentes penitenciários, os guardas civis, entre outros. É o caso por exemplo, da Guarda Suíça, que faz a segurança do Vaticano. Estes soldados zelam pela segurança do Papa, que é um Chefe de Estado, e evidentemente de todos os fiéis que visitam a Santa Sé, fazendo a guarda preventiva. Ainda assim o uso das armas é tratado pela Doutrina como direito, não como dever.

No mesmo capítulo do Catecismo, a Igreja se manifesta contra a fabricação e o comércio de armas, e recomenda que as Autoridades Públicas tenha um controle sobre a regulamentação do uso delas. Podemos ler sobre isso especialmente a partir do parágrafo 2243, e no subtítulo “Evitar a Guerra”, que começa no 2307. Também a Doutrina Social da Igreja, em seu Capítulo IX, especialmente no item III – A falência da paz: a guerra, que se inicia no parágrafo 497, fala sobre o uso de armas. E por diversas vezes o Papa Francisco vem se manifestando contra a fabricação e o comércio de armas, e pontuando os danos sociais que elas causam.

Eu entendo que a situação que vivemos no Brasil é bem peculiar. Os índices de violência assustam, e a solução mais rápida e viável parece ser o “cada um por si”, já que o Estado indica não ter condições de zelar pela segurança de todos. O governo demonstra não poder oferecer policiais bem preparados e bem remunerados, com equipamentos adequados, uma rede de inteligência que permita evitar a atividade criminosa, entre outros. A alternativa mais adequada pode parecer permitir que a população tenha condições de se defender sozinha, mesmo que a Igreja não recomende isso expressamente.

Mas além de a Igreja não endossar esse tipo de solução, ela ainda demonstra ser ineficaz do ponto de vista da segurança. De acordo com dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, em 2014, 61% das armas de fogo apreendidas na Região Sudeste do Brasil eram de fabricação nacional, e de calibre permitido. Ou seja, haviam sido adquiridas de maneira legal, e foram parar nas mãos de criminosos após terem sido furtadas ou roubadas. O relatório completo pode ser lido aqui.

Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, obtivemos os dados de o aumento de 1% do comércio de armas no Brasil corresponde a 2% no aumento de homicídios, e não tem efeito de evitar crimes como roubo, conforme pode ser verificado neste artigo.

Na prática, percebemos que além de a Igreja não ser a favor do uso de armas para a defesa doméstica, conforme é difundido, ainda não é um bom negócio do ponto de vista da segurança efetiva. Ocorre que ter uma arma não evita que você seja roubado, e dificilmente alguém consegue se defender quando é surpreendido por um assaltante, estando armado ou não. 

A reação a um assalto é muito perigosa. Ao reagir você expõe a perigo sua vida, e a de demais pessoas que estão ao redor. Uma arma não é como um controle remoto, em que você aperta o botão e ele desliga a sua televisão. Muita coisa deve precisa ser levada em conta para reagir rapidamente e efetuar disparos, e na maior parte das vezes o resultado se agrava com a reação. De acordo com matéria publicada no ano passado a respeito do Mapa da Violência do Brasil, quem sai na rua armado tem chances de 60% a 70% de maiores de morrer em um conflito, conforme podemos ver aqui. E de cada 4 pessoas que reagem a uma assalto, 3 morrem ou ficam gravemente feridas. No Evangelho de Mateus, capítulo 26, versículo 52, lemos que Jesus diz: “Todos os que usam a espada, pela espada morrerão”.

É claro que a sensação de insegurança é grave, mas facilitar o acesso à armas pode piorar ainda mais o problema, pois mais armas no mercado acabam indo parar nas mãos de criminosos. Isso sem mencionar os casos de suicídios que aumentam substancialmente, e os acidentes domésticos. Armas são feitas para matar, não servem para outra coisa. Devem ser usadas com isenção e cautela por pessoas preparadas para defender a sociedade. Por mais que pareça que estamos a mercê de bandidos, ninguém deve ser responsabilizado por defender sua família de um agressor armado. Isso é extremamente injusto, visto que a vítima sempre tem mais a perder.

Na verdade, um maior controle do acesso às armas para a população dificulta também o acesso de criminosos. As armas mais usadas para cometer os crimes de roubo são aquelas que foram roubadas de quem as tinha legalmente. Armas mais pesadas como fuzis, que são contrabandeados e nunca foram registrados no Brasil são minoria, e não são usados para praticar os crimes que mais nos atingem. A falsa sensação de estar protegido por ter uma arma, na verdade configura um perigo maior para todos. 

Por fim, a primeira regra da Ordem Franciscana Secular, chamada de Memoriale Propositi, orienta a “não receber nem levar armas mortais contra quem quer que seja”. E também as Constituições Gerais da Ordem dos Frades Menores orienta a denunciar as corridas armamentistas, tão nocivas aos mais pobres. Cabe então uma reflexão sobre quem mais sofre com o aumento do comércio de armas, e quem de fato se beneficia disso. Olhar mais criticamente para os motivos expostos, para o que de fato orienta a Igreja, e para o risco que corre quem reage a uma situação crítica envolvendo armas. Todos nós sonhamos com uma sociedade pacífica, e a construção dela exige uma postura aberta e de diálogo entre todos.

Paz e Bem!
Carlos Fernandes Vera Neto

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