Antes de começar a falar sobre esse tema, é necessário pedir licença à todas as mulheres, pois, sendo homem, não sou a pessoa mais indicada para tratar desse assunto. Seria muito mais pertinente uma abordagem a partir da ótica feminina, mas diante de um tema tão urgente, acho importante que a primeira publicação da coluna que irei escrever trate das diversas formas de violência praticadas contra mulheres, e as maneiras como a voz feminina tem se feito ouvir nos tempos recentes.
Minha intenção aqui não é fazer nenhum tipo de análise técnica ou crítica, e sim procurar oferecer algumas provocações a partir do ponto de vista Cristão, com um olhar franciscano voltado para comunhão da criação. Desde já deixo os espaços abertos para ouvir a voz feminina sobre o tema, que é indispensável e muito mais esclarecedora.
A violência contra as mulheres se desvela de muitas formas desde os primórdios. Nas sociedades primitivas, temos relatos de que as mulheres eram tratadas como propriedade, e não tinham opinião nem podiam expressar sua vontade. Alguns traços dessas sociedades chegaram até os nossos tempos, consolidando uma cultura machista e misógina no mundo todo. Não quero tratar aqui de feminismo, mas sim de empoderamento feminino. Minha abordagem é de como as mulheres têm feito suas vozes serem ouvidas, como têm preenchido os espaços predominantemente masculinos e têm alcançado postos de liderança. Muita coisa ainda precisa acontecer para que a mulher tenha acesso aos mesmos direitos e oportunidades que os homens e obtenha o reconhecimento merecido, mas alguns passos foram dados.
Não é possível mensurar o tamanho da dor, da ofensa e da violação que sente uma mulher que é agredida, seja física, moral, psicológica ou emocionalmente. Todos nós já sabemos que mulheres ganham menos que os homens, que sofrem violência fora e dentro de casa, que os agressores são muitas vezes pessoas de sua confiança, que a violência se apresenta de diversas formas, até econômica. Acontece todos os dias, e não é pouco não, cerca de 606 casos de violência doméstica contra a mulher são registrados por dia no Brasil, e aproximadamente 164 mulheres comunicam que foram vítimas de estupro. Mas a estimativa é que apenas 10% dos casos sejam comunicados às autoridades, conforme dados apurados em 2018 com relação ao ano anterior.
Além da covarde forma de violência física, ainda existe um tipo de violência social. Por exemplo, parece senso comum que a responsabilidade pela educação dos filhos seja da mulher, que ela tenha jornada dupla ou tripla de trabalho para “dar conta da casa”; que além de tudo, ela precise ser escrava dos padrões de beleza impostos pela sociedade. Muitas vezes ela é cobrada para ter um bom casamento e para que tenha filhos. Percebemos que ainda hoje algumas mulheres não conquistaram a liberdade para tomar decisões sobre seu futuro. Essas questões já são debatidas em alguns ambientes, e é necessário ampliar esse diálogo.
Sabemos que hoje existem mecanismos legais que garantem o direito das mulheres, como é o caso da Lei Maria da Penha. Mas percebemos também uma falta de efetividade prática dessas políticas públicas, por exemplo: caso uma mulher vítima de violência doméstica, ameaçada e agredida, venha a solicitar as medidas protetivas de que tem direito, e supondo que o Judiciário conceda as medidas, estipulando o afastamento do agressor e até a distância mínima que pode chegar da vítima, o que garante a liberdade e a segurança dessa mulher? Será que ela terá tranquilidade para caminhar pelas ruas sabendo que seu agressor está livre e o que o impede de se aproximar dela é apenas um papel? As políticas públicas que hoje permitem o diálogo sobre a conquista de espaços pelas mulheres se traduzem efetivamente em mais segurança?
Por muito tempo pareceu natural que o tratamento dispensado às mulheres por parte de nós, homens, fosse o de oferecer proteção e estabilidade financeira em troca de favores domésticos. E caso a mulher afrontasse nossa autoridade, mereceria ser reprimida. Dessa maneira, havia o lugar das mulheres e o lugar dos homens. Elas não serviriam para dirigir, liderar, comandar, e deviam ainda atender muito bem aos anseios sexuais de seus esposos, tratados pela lei como deveres conjugais. Mas houveram na história algumas exceções a essa forma de tratamento machista, e são nelas que devemos nos apoiar para mudar a cultura predominante.
Passemos a observar a forma como Jesus se relaciona com as mulheres através de relatos dos evangelistas. Gostaria de tratar de um trecho do Evangelho de João, quando Jesus e seus discípulos estão na celebração de um casamento em Caná (Jo 2, 1-10). O evangelista inicia a narrativa mencionando primeiramente a presença de Maria, complementando que Jesus e seus discípulos também haviam sido convidados, fugindo à lógica da época que registrava a presença masculina nesses eventos. João menciona que faltou vinho, e foi a mãe de Jesus quem percebeu e foi se socorrer de seu filho. O tratamento dado ao evangelista para Maria sempre é “mãe de Jesus”, mas o que chama a atenção é que Jesus responde à Maria “Mulher, o que existe entre nós?”. Alguém poderá dizer que ao responder dessa forma Jesus diminui a importância de Maria em sua obra, pois tira dela o papel de mãe. Eu penso diferente.
Na sequência da narrativa Maria pede aos que serviam para fazer tudo que Jesus mandasse. E Ele transforma a água em vinho, o que foi considerado o primeiro sinal do Evangelho de João. No fundo, Jesus atende o pedido de Maria, mas não de Maria sua mãe, Ele atende o pedido de Maria, uma mulher. O lugar da mulher nesse Evangelho é o daquela que tem a sensibilidade de perceber o que está acontecendo e não fica parada; ela busca ajuda daquele que pode transformar as realidades. Nem toda mulher pode ser mãe, mas toda mãe é mulher, e tem o sagrado feminino dentro de si. O lugar de toda mulher, para Jesus, é o de auxiliadora nas transformações, que só acontecem quando são despertadas e gestadas no coração de quem olha para fora, de quem não fica preso ao seu egoísmo. Na minha opinião, Jesus não diminui o papel de Maria, ao contrário, amplia, conferindo um espaço de ação e de diálogo com o universo feminino sem precedentes até então. O vinho novo, que foi transformado a partir da participação de uma mulher, é muito melhor que o vinho velho.
A temática feminina é recorrente nas escrituras, e a presença feminina é imprescindível para a Obra de Jesus. Maria, sua mãe, é reconhecida como a primeira apóstola, que acompanhou seus passos durante toda sua passagem por esta terra. Recentemente, também Maria Madalena recebeu da Igreja o título de apóstola, por seu envolvimento no projeto de Cristo e sua liderança junto às primeiras comunidades. Sinal de que o apostolado não tem limitações de gênero, e o seguimento de Cristo vai além dessas questões. Aliás, a presença feminina na Igreja é infinitamente superior à masculina, e seu comprometimento digno de destaque. Incontáveis são as catequistas que ensinam com amor, as ministras que acolhem e distribuem Jesus Palavra e Eucaristia, as agentes de pastorais, as missionárias, as religiosas, as consagradas, todas mulheres que assumem o compromisso de olhar para fora e ajudar a transformar as realidades.
Também Francisco encontra mulheres indispensáveis para a concretização da Obra de Deus. Desde sua mãe, que desperta em seu coração a sensibilidade, os valores nobres e o profundo amor a Deus, e que com profetismo já enxerga os traços de santidade de seu filho muito antes de sua conversão. Também Clara, recebe o mesmo chamado e assume com a mesma coragem o compromisso com a Pobreza Evangélica, e que com sua presença feminina traz completude à Obra iniciada por Francisco. Trago ainda a presença fundamental e fraterna de Giacomina de Settesogli, que de tão próxima auxiliadora dos frades, era chamada por Francisco de “frate Giacomina”.
Por fim, embora ainda haja resistência por parte de alguns setores da sociedade, é essencial que alguns espaços sejam ocupados pelas mulheres. Temos ótimos exemplos de como podemos transformar as realidades para melhor, quando o olhar atento e a coragem inovadora feminina nos indicam o caminho. Os espaços de poder precisam ter representatividade de todos para serem justos. Permitir o acesso das mulheres aos mais variados espaços, a exemplo de Jesus, é enriquecedor para toda sociedade e para a Igreja, e indispensável para que não falte vinho no nosso futuro.
Carlos Fernandes Vera Neto
Muito bom!
Espero a sua visita e os seus comentários 🙂